Aldeia Nagô
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Polêmica: A fome de miséria do Bispo por Rodrigo Guéron

5 - 7 minutos de leituraModo Leitura

Os que apóiam Dom Cappio não podem ser de esquerda. Tornaram-se
cúmplices e motores de um dos mais profundos conservadorismos brasileiros. Um
esquema que glorifica exatamente aquilo que precisa ser vencido: fome,
sofrimento e morte.


 Rodrigo Guéron

Escrevi um primeiro artigo sobre a greve de fome de Dom Luiz
Cappio contra a transposição do Rio São Francisco no jejum anterior do
religioso. Naquela ocasião, ele recebeu o apoio de alguns dos maiores coronéis
oligarcas nordestinos: ACM foi visitá-lo e o então governador de Sergipe, João
Alves Filho, chefe do pefelê local, participou de uma missa em sua homenagem.
Note-se que ambos foram derrotados, nas eleições que se seguiram, exatamente por
dois candidatos a governador do PT, numa campanha eleitoral onde as obras do rio
não deixaram de ser debatidas.

É evidente que as discussões técnicas em torno da transposição são
importantes. O problema são as características do ato protagonizado pelo bispo,
o que esta performance diz e simboliza. Muito mais que os
apoios ecléticos recebidos por Dom Cappio, seu gesto traz à tona algo que
expressa o que o Brasil, e o Nordeste em particular, têm de mais conservador e
violento.

O ato do bispo é, em primeiro lugar, um culto à fome, ao
sofrimento e em última análise à própria morte. O bispo se auto-exalta, e é
exaltado, como alguém que seria mais virtuoso que os outros porque sofre e passa
fome. Isso o faria uma espécie de portador da verdade. Ou seja, fome e
sofrimento seriam uma espécie de passaporte para a bem. Dessa maneira, no
entanto, o bispo restaura o próprio circuito de miséria, violência endêmica e
poder, que se fecha numa lógica, num sentido, que há mais de um século aprisiona
a vida, e conseqüentemente a política, no Nordeste.

A pulsão de morte… a mistificação religiosa contra a qual
Glauber Rocha se levantou com veemência

O mal que o moralismo salvacionista católico fez, e faz, ao país,
apesar de toda ambígua e impressionante potência de Canudos, parece não ter fim.
O culto ao mártir morto e vitimizado, a lógica da sina do miserável
predestinado; enfim, a mistificação religiosa contra a qual Glauber Rocha se
levantou com veemência. Esse ímpeto, que balança entre o conformismo e a atitude
suicida/auto-martirizante por uma grande causa – como supostamente é a do bispo
– transforma-se numa espécie de pulsão de morte coletiva que transcende, no
Brasil, os limites do Nordeste.

Estou longe de ser um entusiasta do desenvolvimentismo, do
progresso a qualquer preço: aí também existe um culto positivista e uma crença
na redenção, em torno da qual organizam-se esquemas de poder. Acredito, no
entanto, que água, produção de alimento e mudanças nas relações de trabalho
fariam bem ao sertão. É claro que deve haver pressão política, para que os
pequenos proprietários desfrutem da obra. Eles podem vir a ser uma classe média
rural, pequenos produtores, por vezes resultado das ocupações de latifúndios
improdutivos feitas pelo MST, e que votaram massivamente em Lula nas últimas
eleições. A Pastoral da Terra e a UDR que me desculpem, mas o MST é fundamental
para o crescimento do nosso mercado agrícola; para que avance o processo de
diversificação e barateamento dos alimentos que hoje vivemos no país.

E embora me considere à esquerda dos marxistas, com suas
teleologias e transcendências, há até algo de marxista nessa minha afirmação,
qual seja, entender que as transformações da produção são sempre, de certa
forma, uma transformação – e uma produção – política. Mas o marxismo cristão
brasileiro torna-se cada vez mais conservador: prefere a metafísica de Marx – a
salvação em algum socialismo imaculado – ao seu materialismo. É triste que os
teóricos da Teologia da Libertação, que produziram uma ruptura e um movimento
liberador na imanência das lutas, na rebelião dos pobres e na potente palavra de
ordem do MST ("Ocupar, resistir, produzir", hoje um tanto esquecida…), tenham
caído nessa captura conservadora que nega a vida pela transcendência.

A mesma lógica moralista de Frei Betto, quando diz que o problema
é os pobres desejarem

É curioso, inclusive, que uma conhecida atriz global apóie com
tanta veemência o tal bispo. Ela que, como milhões de pessoas, todos os dias
toma banho em água limpa graças à transposição do rio Guandu, que abastece o Rio
de Janeiro; e que é famosa graças, além de seu trabalho, à poderosa indústria do
entretenimento e a seu custoso aparato tecnológico, quer agora negar a
tecnologia aos pobres e falar dos perigos do mercado e do dinheiro se expandir
pelo sertão. É a mesma lógica moralista que fez Frei Betto dizer, há não muito
tempo, que a culpa da fome era da geladeira, porque fez os pobres desejarem ter
sorvete e refrigerante, quando antes se satisfaziam com arroz, feijão e carne
seca. Os pobres, os que estão fora do "mercado" desejando: este é na verdade o
"perigo"….

Parece claro, portanto, que não foi contra os possíveis problemas
da transposição do rio, nem contra as grandes misérias do capitalismo, que essa
greve se voltou. É na verdade – como Gil e Caetano bem disseram na canção Haiti, numa menção à ira de nossas "classe médias" contra as
escolas propostas por Darci Ribeiro – "um pânico mal-dissimulado diante de
qualquer, mas qualquer mesmo, plano que pareça fácil é rápido, e vá representar
uma ameaça de democratização…"

Suponhamos mesmo que, na pior hipótese, a transposição beneficie o
agronegócio, as mega-empresas agrícolas exploradoras. Então, organiza-se um
sindicato, reivindica-se melhores salários, participação nos lucros, faz-se uma
boa greve… Em todo caso, melhor que o servilismo aos coronéis, que não querem
a transposição; melhor que uma procissão de miseráveis que santificarão um bispo
morto e pedirão que Deus "nos mande chuva" e se autogloficarão na miséria, na
privação e na dor.

Acho inadmissível que setores que se dizem "de esquerda" apóiem
isso: não são de esquerda, posto que estão sendo cúmplices e motores de um dos
mais profundos conservadorismos brasileiros. Um esquema que e glorifica
exatamente aquilo que precisa ser vencido: fome, sofrimento e morte.

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