Precisamos deixar o comodismo e combater o cinismo no sistema de justiça criminal. Por Afrânio Silva Jardim
As centenas de páginas usadas pelos desembargadores para tentarem legitimar a condenação do ex-presidente Lula apenas apontam indícios de que o triplex lhe estaria “reservado”, “atribuído”, “destinado”, “prometido” e que ele teria demonstrado algum interesse no imóvel, tendo sido realizadas obras para melhor adaptá-lo à sua conveniência.
Mesmo que tudo isto estivesse cabalmente provado (e não está), o ex-presidente Lula não teria cometido crime algum. O crime de corrupção passiva exige para a sua caracterização que alguém RECEBA INDEVIDA VANTAGEM, em razão do exercício de um cargo público. Por isso, esta é a acusação formulada, confusamente, pelo Ministério Público Federal. O Poder Judiciário não pode julgar o réu por fatos diversos dos narrados na peça acusatória (art.384 do Cod. Proc. Penal). Repito: o crime é RECEBER indevida vantagem, ou seja, RECEBER O TRIPLEX.
Desta forma, a comunidade jurídica está perguntando, aos gritos: desembargadores, QUANDO O EX-PRESIDENTE LULA RECEBEU O APARTAMENTO TRIPLEX? O QUE CARACTERIZA ESTE RECEBIMENTO? COMO ELE REALMENTE FOI EFETIVADO? Por que não explicitam isso? Seria simples, muito simples.
Acho que tudo isso que está acontecendo em nosso país é muito perigoso. O cinismo campeia em nosso sistema de justiça criminal, deslegitimando-o. O Estado de Direito está sendo desrespeitado flagrantemente. Não mais me sinto seguro aqui no Brasil.
Notem, ademais, que o Ministério Público Federal, tão diligente em perseguir algumas lideranças populares, continua inerte em face da barbárie praticada contra o preso Sérgio Cabral, acorrentado como se fosse um escravo no século XIX !!!
Por tudo isso, conclamo todos da comunidade jurídica, inclusive membros do Ministério Público e do Poder Judiciário, a saírem desta cômoda posição de inércia e virem fazer coro contra este deletério estado de coisas. Precisamos acabar com estas posturas de “bons moços”, de “politicamente corretos”, mesmo que tenhamos de assumir alguns riscos funcionais ou pessoais. A gravidade desta situação exige riscos e sacrifícios.
Quero aqui parabenizar o “Coletivo Transforma Ministério Público”, nova entidade que congrega membros do Ministério Público que têm a coragem de assumir posições claras em prol de uma sociedade justa, fraterna e realmente respeitadora da legalidade e das regras de nossa Constituição Federal. Tenho orgulho em ser um de seus associados.
Importante ressaltar que não somos “petistas” e não estamos desempenhando atividade político-partidária. Estamos, sim, pugnando pelo princípio da legalidade e por justiça.
Será justo deixar o maior líder popular em toda a história do Brasil, sem prova de ter praticado um crime, morrer na cadeia, pobre e humilhado?
Enfim, não dá mais para omissões e cômodo silêncio. Vamos berrar, vamos gritar contra toda esta hipocrisia. Vamos agir para barrar todo este obscurantismo que ameaça os nossos melhores valores. O Direito de Resistência justifica que arrostemos alguns dissabores, pois estaremos felizes por termos lutado por dignidade. Sem dignidade, talvez a vida não valha a pena.
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Afranio Silva Jardim, professor associado de Direito Processual Penal da Uerj. Mestre e Livre-Docente em Direito Processual pela Uerj. E procurador aposentado do Estado do Rio de Janeiro
Artigo publicado no FACEBOOK do autor.