Profunda crise hegemônica no Brasil de hoje. Por Emir Sader
A crise hegemônica, segundo Gramsci, é aquele momento em que nenhuma força consegue se impor consensualmente na sociedade. O momento em que “o velho morre e o novo não consegue nascer”. Não viveríamos, da forma mais clara, esse momento no Brasil de hoje?
Senão, vejamos. O consenso estabelecido pelo neoliberalismo de Collor e de FHC entrou em crise com a vitória do Lula em 2002. A desqualificação do Estado em favor do mercado, a prioridade do ajuste fiscal em relação às políticas sociais – eram os elementos da virada no consenso nacional. Lula incorporou, do período anterior, a preocupação com o controle da inflação, mas promoveu a questão social como a fundamental no país mais desigual do continente mais desigual.
O sucesso das políticas sociais do governo Lula foi o responsável pela mudança nos consensos nacionais. Assumia-se que o problema fundamental do Brasil é a desigualdade – junto com a pobreza, a miséria, a exclusão social. O Estado recuperou seu prestígio, por levar adiante as políticas socais, por recuperar a capacidade de expansão da economia, por garantir o aumento dos salários acima da inflação e diminuir drasticamente o desemprego.
A crise do mensalão foi uma tentativa de desqualificar esse novo consenso. Acusando o governo e o Estado como fontes da corrupção, ao mesmo tempo em que se tentava deslocar a prioridade do país da questão social para a da corrupção. Apesar do sucesso do processo do mensalão, ele não conseguiu se impor inicialmente. Lula se reelegeu apoiado no sucesso das políticas sociais do governo.
Mas estava colocada a grande disputa de hegemonia, dos consensos nacionais – questão social – que obrigatoriamente tem no Estado um agente fundamental – ou corrupção, que desqualifica o Estado e, por extensão, promove o mercado. A imagem do Lula ao final do seu mandato – mais de 80% de referências negativas na mídia e mais de 90% de apoio – confirmava o novo consenso nacional. Havia maioria política e hegemonia das questões sociais.
Foi ao longo do primeiro mandato da Dilma que se foram gestando as condições da crise atual que, no fundo, é uma crise de hegemonia. Dilma perdeu a eleição onde os formadores de opinião tiveram peso determinante, especialmente nas grandes metrópoles do centro sul do país. Ganhou onde o peso das políticas sociais foi determinante, como todo o Nordeste, sobrepondo-se à ação dos monopólios privados da mídia.
A quase divisão do país ao meio pelo resultado final das eleições esconde um fator fundamental: os grandes formadores de opinião estão todos contra ela. E reconstruíram um consenso negativo contra o governo que, traduzido em força política, bloqueia a capacidade do governo de governar.
Ao mesmo tempo, ao invés de reafirmar as teses que levaram à quarta vitória eleitoral seguida, o governo assumiu um caminho que enfraquece os consensos populares construídos nos anos anteriores e aceita os supostos do consenso opositor, centrando sua ação no corte dos gastos públicos – na contramão da linha vitoriosa do governo diante da irrupção da crise internacional, em 2008.
Ao mesmo tempo, apesar de conseguir reimpor seus consensos – através do terrorismo econômico e do denuncismo sistemático -, a direita não tem os meios de traduzi-los em força política. Perdeu as eleições, não conseguiu derrubar a Dilma e tem que se enfrentar com a possibilidade de ter que se enfrentar de novo com o Lula em 2018, com grandes possibilidades de uma nova derrota, inclusive porque não tem candidatos de apoio popular e teria, de novo, que encarar a comparação do seu governo com os do PT. A batalha da direita hoje é a de tentar incluir nesse consenso um nível de rejeição da imagem do Lula, que dificulte sua eleição em 2018. Apenas isso.
O país se encontra assim paralisado, na inércia, numa situação em que nem o governo, nem a oposição, conseguem se impor. Há uma profunda crise hegemônica, um empate catastrófico, que pesa muito negativamente sobre o país.
Ao apostar no ajuste fiscal, no máximo o governo conseguirá reequilibrar as contas públicas, mas à custa de aprofundar a recessão e, com ela, o desemprego e a perda de poder aquisitivo dos salários. O ajuste, somado à elevadíssima taxa de juros, bloqueia a capacidade de recuperação da economia.
A via de resolução da crise hegemônica aponta em duas direções: a priorização na expansão da economia, conforme a linha utilizada com sucesso no começo da crise internacional, em 2008, acompanhada pela baixa sistemática da taxa de juros; a outra, a formulação do projeto de continuidade da democratização social que o pais vive desde 2003, acompanhada pela democratização do sistema politico e dos meios de comunicação. Em suma, retomar a democratização econômica, projetada nos planos social e política. Para poder criar um consenso nacional não apenas baseada na centralidade da questão social, mas somando a ela a democratização politica e da própria formação da opinião publica.
Artigo publicado originalmente em http://www.brasil247.com/pt/blog/emirsader/207668/Profunda-crise-hegemônica-no-Brasil-de-hoje.htm