“Mano Brown me proibiu de ir a uma viagem pelo simples fato de ser mulher”, diz Eliane Dias. Por Maria Laura Neves
A advogada Eliane Dias nasceu nos fundos de um barraco, morou na rua e teve o rosto queimado, aos 5 anos de idade, pela mulher que deveria defendê-la. Para sobreviver à miséria, foi faxineira, babá e modelo.
Aos 23 anos, casou-se com Mano Brown, ídolo das periferias e vocalista dos Racionais. Hoje é uma das principais vozes na defesa das causas negra e feminina do Brasil
Botar moral”, na linguagem das ruas paulistanas, é um termo que significa impor respeito. É também uma expressão que sintetiza a trajetória da advogada Eliane Dias, 46 anos, uma das principais defensoras dos direitos das mulheres negras no Brasil. Nascida dentro de um quartinho em um barraco da periferia de São Paulo, no início dos anos 70, Eliane morou na rua com a mãe quando bebê. A primeira casa da família foi construída quando ela tinha 9 anos. Ainda criança, trabalhou como faxineira e babá, criou os irmãos para que a mãe, doméstica, pudesse morar no emprego. Na adolescência, distribuiu panfletos na rua e embalou chicletes para pagar, sozinha, um curso de secretária. Trabalhou em empresas, concessionárias. Nos anos 90, foi também modelo e fez campanhas para grandes grifes nacionais, como Hering e Guaraná Brasil.
Foi nessa época que ela virou musa do menino que se tornaria o maior ídolo das periferias brasileiras, Mano Brown (ou Pedro Paulo, como ela o chama), líder dos Racionais, com quem vive há 25 anos. Mas não foi o título de primeira-dama do rap nacional que lhe trouxe poder e estima. Sua vida mudou em 2002, depois que o marido a proibiu de ir a uma viagem da banda pelo simples fato de ser mulher. Decidida a não passar por outra humilhação, matriculou-se em um cursinho e entrou na faculdade de direito. Formada, tirou a carteirinha da OAB, arrumou um emprego em que chegou a ganhar R$ 20 mil e entrou para a política – desta vez como assessora, não mais como cabo eleitoral.
Mãe de Jorge, 21, e Domênica, 17, tem, hoje, dois trabalhos. O primeiro é a gerência da Boogie Naipe, produtora musical que cuida da carreira de Mano Brown e dos Racionais. Por insistência da empresária Paula Lavigne, Eliane se associou ao marido em 2012 e salvou as finanças do grupo. Mas o trabalho que lhe enche de orgulho é a coordenadoria do programa antirracismo da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, o S.O.S. Racismo. Por causa dele, viaja pelo Brasil para empunhar a bandeira do feminismo negro, fica em cima dos deputados paulistas para que punam o preconceito de raça, além de acolher denúncias. Também faz parte de projetos que resgatam a autoestima das meninas da periferia e diz que seu maior sonho é a união entre as mulheres negras do Brasil.
A seguir, confira os principais trechos da entrevista. A íntegra está na edição de março da Marie Claire, já nas bancas!
MARIE CLAIRE No mês passado, a discussão sobre apropriação cultural tomou as redes sociais depois que uma menina branca, que tratava um câncer e por isso usava um turbante, foi repreendida por uma negra. Qual é a sua opinião sobre o assunto?
ELIANE DIAS Compactuo com a questão da apropriação cultural. A gente vinha trabalhando com a valorização da cultura negra e os brancos estavam tomando esse poder com o rap, por exemplo. No ano passado procurei um grupo negro e tive dificuldade de encontrar. O turbante faz parte da nossa cultura, mas não é um monopólio. Temos questões mais importantes para debater hoje, como a violência contra os negros nas universidades. É claro que uma pessoa doente pode usar um turbante. A discussão é para grandes escalas.
MC Como virou uma militante do feminismo negro?
ED Sempre militei. A mulher negra é vista com desconfiança. Em todos os meus trabalhos, quebrei esse estereótipo e deixei a porta aberta para outra negra ocupar o lugar. Mas comecei a trabalhar com política em 1994, fazendo campanha para candidatos das minorias. Depois que me formei em direito, fui trabalhar na Assembleia Legislativa, com a deputada Leci Brandão, e me apaixonei. Adoro trabalhar em uma casa de leis. No ano passado, vim para o S.O.S. Racismo.
MC Você nasceu na periferia de São Paulo, morou na rua, é a primeira da família a ter um diploma. O que foi determinante nessa trajetória de superação?
ED Sou a primeira de quatro filhos de uma mãe solteira, um filho de cada pai. Minha mãe não tinha casa. Enquanto estava grávida de mim, deixaram-na ficar num quartinho e nasci ali mesmo. Moramos na rua até meus 8 meses, quando ela começou a trabalhar de doméstica e pagava alguém para me olhar. Uma dessas mulheres queimou meu rosto com comida quente. Outra me deixou tomar um vidro de remédio. Minha mãe conseguiu construir um barraco quando eu tinha 9 anos e três irmãs. Quando fiz 12, nasceu o caçula, que passei a cuidar com uma semana de vida para ela voltar a trabalhar. Enquanto cuidava dele, estudava, lavava roupa para fora e também olhava filhos de outros. Meses depois, o marido da minha mãe chegou em casa bêbado e quebrou tudo. Me escondi com meus irmãos na casa do vizinho. Mudamos para o Capão Redondo, onde moro até hoje. Enfrentei tudo de um jeito que as pessoas ricas não conseguem. Tinha uma leveza de saber que a vida é assim.
MC Sempre gostou de estudar?
ED Muito. Minha mãe disse que poderia estudar até os 14 anos, depois disso, “era por minha conta”. Fui trabalhar para pagar o colégio, com especialização em secretariado. Gastei três anos de tempo e dinheiro para aprender como andar do lado de um homem, guardar segredos dele. Basicamente um curso de machismo [risos]. Odiei trabalhar como secretária. Depois, arranjei um emprego em uma concessionária. Comecei no almoxarifado, subi até chegar à chefia e fui demitida por assédio.
MC Como assim?
ED Meu chefe ficou meses me assediando, dando tarefas para terminar de madrugada. Como eu não tinha carro, ele me oferecia carona. Tentava ficar comigo, mas eu nunca quis. Nunca foi violento. Era político, branco, bonito. Quando percebeu que eu não queria, me demitiu. Fiquei muito mal, quase morri [os olhos se enchem d’água]. Cheguei a pesar 45 quilos.
MC Por quê?
ED Fiquei triste com a fragilidade de ser mulher. Não podia mudar o que sou. Fora que me dediquei demais, era muito boa funcionária. Foi muito injusto.
MC Foi por isso que decidiu ser advogada?
ED Na verdade, era um sonho desde criança. Achei um livro da Carolina de Jesus [primeira escritora brasileira negra, falecida em 1977] no lixo, aos 8 anos. Sabia ler, mas não entendia as palavras. Me falaram que advogados entendiam as palavras. Só consegui fazer faculdade depois que meus filhos nasceram.
MC Como tomou essa decisão?
ED Depois de pedir para eu tirar passaporte e visto para a família toda, meu marido desistiu de me levar para uma viagem aos Estados Unidos. Um dia ele chegou e falou: “Você não vai mais. O Primo [Preto, empresário musical e amigo de Mano Brown] disse que não é legal ir mulher”. Respondi: “Tá bom, vai lá”. Ele perguntou: “Você não vai brigar? Vai me trair?”. Falei que não, que quando ele voltasse tudo estaria melhor. Achei um desrespeito muito grande. Me deixou ferida mortalmente. Na volta, um mês depois, tinha me matriculado em um cursinho pré-vestibular. Disse para ele: “Não viajo nem me divirto com os Racionais. A banda agora vai ter que me dar a faculdade”. Ele pagou a Universidade Municipal de São Caetano – eu estava sem trabalhar havia seis anos, cuidando da casa e dos filhos. Depois que me formei e tirei a carteirinha da OAB, trabalhei em um escritório. Ganhava muitíssimo bem, quase R$ 5 mil por semana.
MC Por que você não acompanha seu marido em shows?
ED Nunca quis. Quando comecei a namorar o Pedro Paulo, tínhamos 18 anos e ele não era cantor. Quando entrou para a música, oito anos depois, achei ótimo, mas o universo não me seduzia. Era um mundo machista, não queria aquilo para mim. No momento em que ele começou a ficar famoso, tive meu filho [Jorge]. Adorava os dias em que ele viajava e eu podia ficar sozinha com o bebê para poder curti-lo em paz.
MC Como se conheceram?
ED Eu era modelo na época – desfilei para grandes marcas, Pandemônio, Hering, Guaraná Brasil. Um dia, estava voltando de um desfile, linda, vestida de pantalona e top brancos, salto alto, quando encontrei meu primo, Ice Blue [dos Racionais], no ônibus. Ele, que adora andar com mulher bonita, me convidou para ir à casa de uns amigos. O Pedro Paulo estava lá e ficou atrás de mim. Achava ele um moleque chato. Feio, feio… Um dia, fomos todos a um casamento. Estava conversando com um cara, que me deu seu número de telefone. O Pedro Paulo viu, chegou, rasgou o papel e saiu me arrastando pela mão. Me colocou nas costas e disse: “Só vou tirar você daí quando falar comigo”. Bicho grosso [risos]. Namoramos por muitos anos, eu tinha minha vida e ele a dele, até que fizemos uma união estável. Demorei oito anos para ter filho porque queria ter condições para isso.
MC Você parou de trabalhar para criar os filhos. Por quê?
ED Quando meu filho nasceu, ninguém queria cuidar dele porque era do Brown. Tinham medo. Ele é muito bravo. Fiquei muito triste de não poder trabalhar [os olhos marejam]. Mas aceitei e criei os meninos com o maior prazer.
MC Como é a relação com seu marido hoje em dia?
ED Um casamento de 25 anos que deu certo. A gente nunca se separou. Não dormimos juntos porque ele sempre chega tarde mas acordamos juntos todos os dias. A gente trabalha juntos, cria os filhos. Mas não somos amigos, somos marido e mulher. Eu o amo. E ele, mesmo com seu jeito bruto de ser, tem um cuidado especial comigo. É só seu jeito de amar.
MC O Brown é assediado pelas mulheres. Como lida com isso?
ED Ele é quem tem de lidar com isso, não eu. É um problema dele, ele que coloque os limites e não me incomode. Só teve uma vez que uma mulher começou a mandar mensagens para a minha filha pelo Twitter. Falei pra ele: “Se vira com isso daqui”. E ele se virou.
MC Você já soube de uma traição?
ED Não. Nunca o vigiei, acho uma perda de tempo. É muito doloroso abrir mão da sua vida para viver a do outro. É muita submissão. A liberdade é um valor muito importante na nossa relação. Há seis anos o Pedro Paulo me ofereceu um salário para eu ficar em casa. Se aceitasse, o que aconteceria? Optei, na minha vida, por não ficar atrás dele. Quando ficou ruim, voltei a estudar. Vivo o mundo machista não de uma forma paralela, mas dentro dele.
MC Você já traiu alguma vez?
ED Não.
MC Você já disse ao seu marido que ele é machista?
ED Claro. Ele sabe que é. E melhorou muito nos últimos anos, à medida que fui impondo limites.
MC Você mora em uma das regiões mais violentas de São Paulo, o Capão Redondo. Precisou proteger seus filhos?
ED Os meninos, na periferia, são pressionados a fumar maconha muito cedo. Se não fizerem coisas erradas, não são considerados homens. E para o Jorge foi ainda pior porque é filho do Brown. Com 12 anos, saía da escola, adventista, e ia para o Rodoanel, ainda em obras, com outros moleques. Pedi demissão do escritório de advocacia para ficar em cima dele. Um dia, me perguntou se maconha era bom. Eu, que nunca experimentei, respondi que sim, senão as pessoas não fumariam. Mas o coloquei no carro e levei na Cracolândia. Chegando lá, disse: tem gente que fuma, estuda e trabalha. Mas tem quem acabe assim. Ele ficou impressionado. Hoje, Jorge está com 21 anos, na faculdade de marketing, fez o filme Na Quebrada, a série 3%, trabalha comigo na Boogie Naipe e tem a própria grife de roupas, Müe.
MC E o pai, como lidou com isso?
ED O Brown é respeitado aonde chega e tem muita confiança de que ninguém mexeria com o filho dele. Uma pessoa para enfrentálo tem que pensar duas vezes. Ele tem muita gente fiel. Realmente, tem mais de 50 mil manos [como diz a letra da música “Capítulo 4, Versículo 3”, dos Racionais].
MC E sua filha, Domênica, deu algum trabalho nesse sentido?
ED Não, porque sempre esteve muito perto de mim. Eu a matriculei em um curso de defesa pessoal com 6 anos, para nunca apanhar de um homem. Fez o filme e a série também e conheceu o teatro e o cinema. Diz que só se sente bem no palco. Será atriz.
MC E você, já apanhou de homem?
ED Nunca. Isso é inadmissível. Não tive pai para me bater, nunca o conheci. Aliás, não admito que homem fale alto comigo. Mas já fui xingada dentro de um ônibus. Um cara, louco, estava do meu lado e começou, do nada, a me xingar de vaca, vagabunda, puta. Desci no ponto seguinte. Outra vez, há anos, um homem com cara de maluco tentou dar uma paulada nas minhas pernas na rua.
MC O Brown é o maior ídolo das periferias brasileiras. Como isso se manifesta na sua vida?
ED Uma vez fui assaltada. Eu tinha parado o carro, um Golf preto, e, quando o cara chegou dizendo que era assalto, falei que era mulher do Mano Brown. Se saísse comigo, muita gente iria atrás dele. Saí do carro e liguei pro Pedro Paulo, que perguntou onde eu estava e foi me encontrar. Em 15 minutos, tinha 20 motoqueiros atrás do meu carro. Duas horas depois, o encontramos.
MC E o assaltante?
ED Não sei. Tem outras histórias: teve um amigo do Pedro Paulo que, quando eu fazia cursinho, me seguia na Marginal Pinheiros, meu caminho para casa.
MC Para te proteger?
ED Não sei. Ele ficava escondido num ponto, quando eu passava, vinha atrás de mim. Cheguei em casa, contei para o Pedro Paulo e disse que estava com medo. O cara parou de vir atrás de mim. Eu sou guardada.
MC Como assim?
ED Uma vez, fui jantar em Moema com umas amigas, quando o Pedro Paulo estava em Porto Alegre. O segurança do restaurante me reconheceu e ligou para ele para contar onde eu estava. Outra vez meu carro quebrou na ponte João Dias [na Zona Sul de São Paulo] e mais de 20 caras pararam para me ajudar. Ao mesmo tempo que pode parecer bom, cerceia minha liberdade. Fico assustada. Tive que proteger meus filhos dessa exposição. As redes sociais deles eram fechadas até outro dia. As páginas dos Racionais têm todo tipo de gente, que migra para as nossas.
Artigo publicado originalmente em http://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2017/03/mano-brown-me-proibiu-de-ir-uma-viagem-pelo-simples-fato-de-ser-mulher-diz-eliane-dias-mulher-do-rapper.html?utm_source=facebook&utm_medium=social&utm_campaign=compartilharMobile