Aldeia Nagô
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Qual farsa Serra quer? por Martin Granovsky

5 - 7 minutos de leituraModo Leitura

O que fica claro, olhando desde a Argentina, é que José Serra
associa o Mercosul a um valor negativo. Para ele, por outro lado, seria
positivo
que o Brasil firmasse muitos tratados de livre comércio. Cabe lembrar
que o
Mercosul não é o paraíso em boa medida porque foi esvaziado de política
pela
dupla FHC-Menem com a ajuda de Domingo Cavallo, o ministro argentino que
adorava
as áreas de livre comércio como Serra. O Mercosul é um resultado
concreto da
construção regional. Outros são a Unasul e o Conselho de Defesa
Sulamericano. E
a chave dessa estabilidade é a sólida relação entre Argentina e Brasil. O
artigo
é de Martin Granovsky, analista internacional argentino e colunista do
jornal
Página 12.


Peço um empréstimo aos irmãos brasileiros: poderiam nos enviar um
manual para entender Serra? Primeiro ele disse que o Mercosul é uma "farsa".
Depois defendeu a "flexibilização" do Mercosul. Como se flexibiliza uma farsa?
Mistério. O que fica claro, olhando desde a Argentina, é que José Serra associa
o Mercosul a um valor negativo. Para ele, por outro lado, seria positivo que o
Brasil firmasse muitos tratados de livre comércio. Segundo Serra, o Brasil não
pode fazê-lo, justamente, por culpa das barreiras que seriam impostas pelo
Mercosul.

Esqueçamos o mistério. Segundo dados do Instituto para a
Integração da América Latina (Intal), durante 2009 o comércio internacional
desabou. As exportações brasileiras para a Argentina, Uruguai e Paraguai, seus
sócios do Mercosul, caíram 27,2% e as importações diminuíram 12,2%. Mas um olhar
histórico é mais interessante:

Em 2008, quando a crise internacional já
havia começado, as exportações cresceram 25,3% em relação a 2007, e as
importações subiram 28,5%.

Mesmo em meio a maior crise desde os anos 30,
o valor do intercâmbio com o Mercosul foi de 28,935 bilhões de dólares em 2009.
Quase igual à cifra registrada em 2007, antes da crise: 28,978 bilhões de
dólares.

Para o Brasil, o Mercosul representou, em 2009, cerca de 10,3%
de suas exportações e importações. Nem o Brasil nem a Argentina sofreram em 2009
como a Grécia sofreu, para citar o caso mundial de um país que agora tem que
seguir o caminho da contração fiscal e econômica, sofrido já pelos brasileiros
com Fernando Henrique Cardoso e pelos argentinos com Carlos Menem. Mas a Grécia
está longe de nós. Vejamos um caso mais próximo: o México sofreu mais porque
cerca de 80% de seu intercâmbio depende da relação comercial com os Estados
Unidos. O Brasil e a Argentina foram menos golpeados pela débâcle e não
precisaram de nenhum Tratado de Livre Comércio (TLC) para seguir com sua
estratégia de comércio diversificado, entre eles ou com a China.

O
Mercosul não é o paraíso em boa medida porque foi esvaziado de política pela
dupla FHC-Menem com a ajuda de Domingo Cavallo, o ministro argentino que adorava
as áreas de livre comércio como Serra. Mas o Mercosul é um dos vários resultados
concretos da construção regional. Outro resultado é a Unasul, que agrupa toda a
América do Sul. Outro é o Conselho de Defesa Sulamericano. E a chave da
estabilidade sulamericana é a sólida relação entre a Argentina e o Brasil, nosso
vizinho com magnitude de Bric. Não é pouco: a região não apresenta nenhum
conflito limítrofe importante e reflete uma sintonia majoritária e um nível de
paz e previsibilidade que hoje são uma jóia mundial.

Quando a palavra
"farsa" aparece em meio a esta construção imperfeita mas persistente convém
acender as luzes de alerta. Se Serra elegeu a espetacularidade para se
diferenciar de Lula e de Dilma Rousseff, e se, além disso, ignora as construções
institucionais coletivas, talvez esteja indicando que na sua opinião os
objetivos regionais devem se dissolver em múltiplos TLCs particulares. A aposta
a favor do modelo dos TLCs não amortece uma crítica feroz. Tampouco serve para
resolver, em um ambiente de negociação dentro da diversidade, crises como as da
Bolívia, da Colômbia, da Venezuela e do Equador, ou para dar um horizonte de
inclusão com o primeiro encontro de presidentes da América Latina e do
Caribe.

Não são gestos retóricos. Quanto mais intensa for a convivência
regional mais fácil será negociar em um mundo turbulento. A América do Sul
provou que pode manter diferenças com os Estados Unidos, como fez ao rechaçar a
Área de Livre Comércio das Américas, e, ao mesmo tempo, evitar um clima de
hostilidade infantil com Washington. Brasil e Argentina, para tomar como exemplo
os dois sócios maiores do Mercosul, tiveram uma postura comum frente à dívida:
desengancharam do Fundo Monetário Internacional, aumentaram suas reservas,
abandonaram o modelo aditivo de absorção de capitais e desconectaram o gatilho
comum a duas bombas, a dívida interna e a dívida externa. Os dois países propõem
o mesmo tipo de reformas democráticas no FMI e em outros organismos
multilaterais. E conseguiram que cada diferença comercial fique limitada a uma
pequena porcentagem de seu intercâmbio comercial (é inferior hoje a 10% do
total) e possa ser negociada sem escaladas políticas.

Com esta política
Brasil e Argentina cresceram e diminuíram a indigência e a miséria. O mesmo fez
o Uruguai com Tabaré Vázquez primeiro e agora com José Mujica, e é isso que está
tentando fazer também o Paraguai com Fernando Lugo. O resultado não está tão
mal, se comparado ao de épocas anteriores de recessão ou de crescimento sem
distribuição de renda nem aumento de empregos. Se nossas políticas parecem ter
sido bastante sérias, por que Serra se opõe a elas? Quererá montar uma farsa?
Com FHC e Menem terminamos chorando. E na vida é melhor a jóia.

(*)
Martin Granovsky é analista internacional argentino, colunista do jornal
Página12.

Tradução: Katarina Peixoto

Artigo publicado originalmente em
http://www.cartamaior.com.br/

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