Aldeia Nagô
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Quando a limpeza não cheira bem por Ana Helena Tavares

10 - 14 minutos de leituraModo Leitura

A Itália, depois de promover uma perseguição política através da
chamada operação "Mãos Limpas", elegeu Silvio Berlusconi. Já uma lei do
tipo na
África do Sul não teria permitido a eleição de Nelson Mandela, cuja
"ficha suja"
envolvia condenação por "terrorismo".

Por
Ana Helena Tavares


Como se sabe, a esquerda, embora progressista, não é toda democrática. Exultado
pelos dois pólos da política, stalinista e fascista são alguns dos nomes que se
aproximam perigosamente do chamado "Ficha Limpa". O que é essa nova lei? Uma
limpeza moral à força? Você? Se fosse um político arrependido de seus crimes não
gostaria do direito à segunda chance?

           
De onde vem a idéia

Peço
a quem puder que me cite uma ditadura que não tenha sido instaurada em nome do
"combate à corrupção". Um dos vídeos, criados ainda ano passado em defesa do
projeto, é um primor de moralismo hipócrita. Apresenta a proposta de uma
varredura que "faria com que os que os eleitores pudessem confiar (?) em quem
votar e mudaria o país".
Em política, cruzadas desse tipo invariavelmente
acabam em vitória da direita – e mais corrupção. A última que vingou por aqui
(travestida de "Marcha pela família com Deus pela Liberdade") eu ainda nem era
nascida, mas sei bem que resultou em 20 anos de ditadura.

O
jornalista e ex-deputado federal Marcos Rolim lembra: "Foi a ditadura militar
que, com a Emenda Constitucional nº 1 e a Lei Complementar nº 5, estabeleceu a
cassação dos direitos políticos e a inegibilidade por "vida pregressa"",

disse Rolim em seu artigo "Boa intenção, má solução", onde acusa ainda o projeto
de legalizar a "presunção de culpa".

Afinal,
quem pode ser condenado por "vida pregressa" sem, ao menos, ter direito à
sentença condenatória com trânsito em julgado, como quer a nova lei? Quem é
"ficha limpa" no mundo e na política de hoje?

O
Maluf que conseguiu provar inocência em todos os inquéritos nos quais foi
processado e, por isso, não entra na roda? Ele votou a favor do projeto e está
aí agora posando de justiceiro.

Taí
um papel renegado pelo ministro Marco Aurélio Melo, único do TSE a votar contra
a nova lei: "Eu não sou um justiceiro. Eu sou juiz. Aprendi desde cedo que no
sistema brasileiro o direito posto visa a evitar que o cidadão tenha sobre a sua
cabeça uma verdadeira espada de Dâmocles. Aprendi que a lei não apanha fatos
passados."
Isso é o que reza o artigo 5º da nossa Constituição, ao afirmar
que a "lei não pode retroagir em detrimento do acusado".

No
final das contas, uma lei desnecessária

Aprendi
recentemente com o consagrado jurista, Dr. Hélio Pereira Bicudo, que esse artigo
é quebrável por crimes imprescritíveis, como a tortura e o seqüestro contínuo.
Crimes de lesa-humanidade. Só. E, segundo o mesmo Dr. Hélio, para o caso
específico de eleições, é quebrável também pelo "princípio da inelegibilidade",
apresentado no artigo 14, parágrafo 9, da Constituição de 88, que reza que:
"Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de
sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para
exercício de mandato considerada a vida pregressa do candidato
(…)".

É
esse o artigo usado em defesa da lei pelo "Movimento de Combate à Corrupção
Eleitoral", responsável pela organização do projeto na sociedade civil e que o
chama de "democrático radical". E é esse o artigo que faz Dr. Hélio chamar a lei
de "obsoleta".

O
respeitável jornalista Jânio de Freitas resumiu, em seu artigo "Ficha Limpa"
(Folha de S. Paulo, 13 de Maio de 2010): "Trata-se de um projeto de
iniciativa popular, cuja aprovação vale como uma advertência para a presença
desse direito na Constituição."
Ou seja, já existia. Mas será mesmo válida
essa "advertência"?

Pesando
os prós e contras

Apesar
de assumi-la como dispensável e muito provavelmente inútil, e, mesmo admitindo
que "O candidato pode não ter sido condenado criminalmente, mas ter sua vida
partilhada de circunstâncias que comprometem uma probidade imprescindível para o
exercício de um mandato público.",
em artigos recentes, Dr. Hélio tem se
mostrado simpático à nova lei, porque considera legítima e bem intencionada a
iniciativa popular. Legítima, sem dúvida, é. O problema é que o diabo mora nos
detalhes e é inegável que lá também mora com ele um sem número de pessoas "bens
intencionadas".

Jânio
de Freitas também acha que a lei tem pontos a serem considerados como vitória.
"É um caso raro de aprovação contra o interesse de grande número de
parlamentares.",
garante. Será mesmo? A quem serve a
desmoralização da classe política senão aos próprios políticos que se vêem
beneficiados pelo desinteresse de um povo que vota por mera
obrigação?

Compreendo e
integro a indignação popular diante do fato de políticos usarem o mandato para
escapar da punição por seus crimes. Indignação que levou à atitude extrema da
criação de tal lei. Não há, no entanto, nada que me convença de que este seja o
caminho. 

Tal
como o Dr. Hélio Bicudo, o advogado Erick Wilson Pereira também considera a lei
desnecessária, alegando, porém, outros motivos: "O Brasil é a única
democracia no mundo que precisa de uma lei para dizer que os políticos precisam
ter ficha limpa. Ter vida pregressa idônea é uma obrigação do agente público.
Porém não se pode inverter os valores democráticos. Afinal o grau de civilidade
de uma nação se mede pelo princípio da presunção de
inocência."

A
presunção de inocência e a condenação sumária

 O
professor de Direito Penal, Túlio Viana, em seu desabafo "Sobre o projeto Ficha
Limpa", vai mais longe: "Se o "ficha-limpa" não fere a presunção de inocência
(defendida pelo art.5º LVII da nossa Constituição), é pior ainda, pois vão
tolher a exigibilidade do cidadão mesmo sendo inocente. Êh argumento jurídico
bão: nós continuamos te considerando inocente, mas não vamos te deixar
candidatar mesmo assim! Que beleza! Ou o cara é presumido inocente ou é
presumido culpado. Não tem meio termo. Muitos dos corruptos brasileiros possuem
"ficha limpa" – especialmente os mais espertos, que não deixam rastros. Por
outro lado, várias lideranças sindicais brasileiras possuem condenações em
segunda instância por "crimes" que envolveram participação em greves ou em lutas
populares; devemos impedir que se candidatem?",
indagou Viana.

           
Como se vê, a polêmica idéia trata-se de uma aberração, que, pelo mundo, tem
apresentado resultados com efeito contrário. A Itália, por exemplo, depois de
promover uma perseguição política através da chamada operação "Mãos Limpas",
elegeu Silvio Berlusconi. Tão limpo quanto Maluf. Já uma lei do tipo na África
do Sul não teria permitido a eleição de Nelson Mandela, cuja "ficha suja"
envolvia condenação por "terrorismo".

No
vídeo citado no início deste texto, o jurista Aristides Junqueira alega que
"diferentemente do que em direito penal, no direito eleitoral impera a
precaução sobre a presunção".
  Por que essa diferença? Não seria a
"precaução" uma forma de condenação sumária?

"Ordem
e precaução"

Muito
se fala em "pôr ordem na casa". E eu pergunto: a que tem se prestado a palavra
"ordem" em nossa história? O que é o "choque de ordem", de Eduardo Paes, atual
prefeito do Rio de Janeiro, senão a criminalização da pobreza? O que foi o
Departamento de Ordem Pública e Social (vulgo DOPS), instaurado por nossa
ditadura militar, senão uma caçada a "terroristas", como Mandela? Pode-se citar
ainda episódios desconhecidos de nossa história, mas que, certamente, não foram
os únicos. O que foi a "Operação mata-mendigo" (bem contada no filme "Topografia
de um desnudo"), que, na década de 60, objetivou "pôr ordem" na cidade do Rio
para visita da Rainha Elizabeth? Os mendigos foram brutalmente torturados e
jogados no rio Guandu. Policiais e funcionários do então Governo da Guanabara
foram indiciados. Porém, com o Golpe de 64, os inquéritos foram todos arquivados
e o episódio quase apagado da história do Brasil.

Será
incontável o número de artifícios malabaríticos que, já tão usados pelos
políticos, surgirão ainda com mais freqüência, como drible para a "mão pesada"
da nova lei. Já se tem notícia, por exemplo, de um que candidatou a esposa. É o
incentivo a esse tipo de "precaução laranja", à sujeira encoberta por debaixo do
pano para melhor ludibriar o eleitor, que buscamos para nossa sociedade e
política?

Por
que (e para que) será?

Será
que os pequenos delitos diários, não condenáveis pela justiça, não corrompem
muito mais nossa política? É muito fácil demonizar os políticos. E nossa "grande
mídia" é a primeira a atirar todas as pedras. Por que será? Imaginem se Lula
vetasse a lei. Seria massacrado nas capas dos jornalões, ainda mais do que já é.
E se fosse proposto um projeto "Ficha Limpa" para a profissão de jornalista,
quantos sobrariam? Haja hipocrisia!

Tamanha
foi a pressão popular, convenientemente apoiada pela mídia, que todos os
deputados votaram pela aprovação do projeto. Ops… Menos um, que, com medo da
reação da opinião pública, se apressou em alegar "ter trocado os botões no
painel de votação por cansaço".
Os eleitores se enganam, porém, quando
imaginam que a nova lei impedirá a reeleição de figuras como Renan Calheiros,
José Sarney ou Fernando Collor. Todos estão em dia com a Justiça, a começar por
Collor, que se elegeu senador depois de ficar inelegível por oito anos, situação
em que se encontram os ex-deputados José Dirceu e Roberto
Jefferson.

"E os casos de compra de voto e abuso do poder econômico?",
é o que indaga o ex-deputado José Dirceu em seu artigo "A mídia em mais uma
de suas jogadas". De fato, estes casos raramente levam a condenações.
Por que não se tem coragem de falar em reforma política? Uma reforma
que proporcionasse reais mudanças na legislação sobre as eleições, no sistema de
financiamento das campanhas, nos guetos que ainda permitem que votos sejam
trocados por dentadura?

Será
que alguém já parou para pensar que a aprovação do projeto significou dar poder
de veto de candidaturas às oligarquias regionais, que controlam a maioria dos
Tribunais de Justiça e os Tribunais Regionais Eleitorais? Por que não se discute
a sério uma reforma no Judiciário que proporcionasse maior rapidez nos
julgamentos, não apenas impedindo a candidatura dos corruptos, mas fazendo com
que eles de fato fossem condenados e presos?

 Por que não pensarmos antes
em educar a população, desde as classes mais básicas do ensino, levando-lhe ao
entendimento de que o eleitor é o agente responsável pelas mudanças de uma
nação, que é ele que detém nas mãos o verdadeiro poder e mostrando-lhe o caminho
para saber escolher melhor seus representantes? Se houver a conscientização de
que voto é direito e não dever, para que mesmo uma lei que impõe ao povo o que é
ou não condenável?

Hitler
tinha a ficha limpa?

Numa
atitude desesperada e destemperada, em grande parte repleta de boas intenções,
foi o próprio povo que a avalizou. Faltou lembrar que Hitler, o senhor da
"mobilização popular", tão pregada pelo movimento ("radical democrático") que
deu origem ao projeto, era um exemplo de "moral e bons costumes": para aproximar
sua figura a de Gandhi, Goebbles, ministro da Propaganda de Hitler, o "vendia"
como vegetariano, enquanto, alertam historiadores, "ele comia macarrão
recheado com carne picante e coberto com molho de tomate".
Na busca por
"pureza", não bebia, não fumava.

Estão
claras as diferenças contextuais: o Fürer alemão foi um ditador. Mas que, em
nome da busca por uma "raça pura" – ou "limpa", não faz muita diferença – gozou
de grande popularidade em sua terra.

*Ana
Helena Tavares,
jornalista por paixão, futura jornalista com
diploma.

Artigo
publicado originalmente em
http://ahrt84.blog.terra.com.br/2010/07/06/quando-a-limpeza-nao-cheira-bem/

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