Receita de um moralismo medieval por Emiliano José
A razão
transforma-se em insensatez e a benção em praga. Que me recorde a frase é
de Marx, e se aplica ao cenário que se quer criar, a partir da direção
da campanha do ex-governador José Serra.
Devo admitir uma ponta de
ingenuidade quando, ao escrever um artigo para Carta Maior, previ que o
debate no segundo turno pudesse se elevar, ou que esperava uma elevação.
Denunciava então, no dia 3 de outubro, quando o segundo turno já se
anunciava, o baixo nível do candidato Serra no primeiro turno, incapaz
de apresentar um projeto político, econômico e social para a Nação.
Afinal, para
fazê-lo devia render homenagens ao ex-presidente Fernando Henrique
Cardoso, de quem ele foge como o diabo foge da cruz, que me desculpem a
expressão religiosa, e peço desculpas porque, como quero dizer neste
artigo, devemos nos esforçar para separar religião e política, embora
seja uma tarefa difícil, como reconheço.
Serra, no primeiro
turno, tangenciou permanentemente a questão do projeto político,
permanecendo sempre nos aspectos tópicos ou nas aparentes radicalizações
sem conseqüência, como o aumento do salário mínimo para R$600,00. Nunca
teve a coragem de dizer que continuaria o projeto neoliberal,
privatizante do País, tal e qual o fizera o ex-presidente Fernando
Henrique, do qual ele não pode se apartar, como às vezes inutilmente
pretende.
Não pode reclamar a
herança daqueles 10 anos – afinal, deve-se resgatar os dois anos de
Itamar Franco, fundado já numa perpectiva neoliberal – e, portanto, não é
possível, assim, confrontar com o projeto dos quase oito anos do
governo Lula, este um projeto que pode ser assumido orgulhosamente pela
candidatura de Dilma Rousseff. Um projeto que decididamente mudou a vida
do povo brasileiro, e cujas políticas até mesmo o candidato Serra tem
dificuldade de atacar, como o Bolsa Família e tantos outros.
Impossibilitado de
expor um projeto e de confrontar os resultados que os quase oitos de
Lula apresentam, Serra ressuscita os mortos. Vai buscar no receituário
udenista, a política do terror, do moralismo medieval, tentando
encontrar no mundo religioso, ou numa parte do mundo religioso, âncoras
que amedrontem a população brasileira. E digo ressuscita os mortos,
porque sua inspiração é Carlos Lacerda.
Denominado O Corvo,
Lacerda investiu contra o governo Vargas com toda ferocidade, e o
argumento era moralista ao extremo, querendo a existência de um mar de
lama no Palácio do Catete. E Vargas foi levado ao suicídio, e com isto
evitou um golpe que só viria a ocorrer 10 anos depois. E não existia mar
de lama, como se sabe. Mas isso só foi possível saber depois que Vargas
morreu. Assim age a direita brasileira, da qual Serra é hoje intérprete
fiel, ator principal. A biografia anterior dele deve ser devidamente
desconsiderada. As pessoas mudam. E muitas vezes, para pior. Como neste
caso.
Mas, e volto a
Marx, os episódios históricos não se repetem. Num, é tragédia. Na
repetição, é farsa. Lacerda protagonizou a tragédia. Serra, a farsa
burlesca. Pretende vivamos num Estado religioso, e, com isso, quer que
questões privadas constituam a essência do debate político. Não é um
projeto de Nação que importa. Colocou no centro da campanha a questão do
aborto. E mesmo nessa questão despolitizando inteiramente o tema.
Em outro momento,
como ministro da Saúde, já pensou diferente. Mas, como já se viu, não é a
coerência que o guia. Sequer sua própria trajetória, seus atos
anteriores. Trata-se de atacar a adversária a qualquer preço, a qualquer
custo, inclusive contando, como foi noticiado, com o apoio da Tradição,
Família e Propriedade (TFP).
A mesma TFP que deu
base e sustentação religiosa e teórica ao golpe de 64, em razão do qual
Serra teve que se exilar. Não custa lembrar que também ali, no golpe de
64, a religião serviu como mote ou como apoio essencial à movimentação
dos militares. Só mais tarde, a Igreja Católica foi compreender a
gravidade da ditadura e ser um esteio na luta contra ela.
É provável que eu
ouça ponderações sobre o que escrevo aqui, por ser este um momento
delicado. Mas, é nos momentos delicados que devemos discutir, desnudar
os argumentos falsos, eliminar o véu que encobre os verdadeiros
problemas. Ou devemos nos render ao medievo trevoso dominante? A
campanha andou num crescendo perigoso quanto a isso. Será que se
pretende criar um clima de queima das bruxas em praça pública? Parece
isso. E parece que o Estado brasileiro há de ser refém de confissões
religiosas, de algumas confissões. Porque a verdade é que nem todas
pensam da mesma maneira.
E o essencial, me
parece, é que o Estado laico há de se afirmar, contra quaisquer
tentativas de constrangê-lo. E o Estado laico – e vamos tomá-lo ao menos
desde a Revolução Francesa – proclama a separação radical entre o
Estado e a religião, consagrado o direito mais amplo à liberdade de
culto a todas as crenças, com nenhuma delas pretendendo ser a verdade
universal, embora qualquer uma possa pretender convencer as pessoas a
acreditar seja ela a detentora da verdade sobre o seu Deus. Um trabalho
de convencimento, no entanto, que sempre respeite o direito das outras
crenças – isso é da democracia, do direito democrático, do Estado de
Direito.
Norberto Bobbio,
num texto denominado Tolerância e Verdade, que compõe o livro Elogio da
Serenidade, fala da tolerância, que ele define como um método "que
implica o uso da persuasão perante aqueles que pensam diferentemente de
nós, e não o método da imposição". Afirma que o laicismo é um dos
componentes essenciais do Estado moderno, que até mesmo as religiões
acabaram por aceitar.
"Tanto isso é
verdade que em todas as Constituições modernas está afirmado o princípio
da liberdade de religião, que é liberdade não apenas daqueles que
professam uma religião, mas também daqueles que não professam nenhuma". É
contra esse Estado moderno que Serra está indo, contrariando princípios
essenciais do Estado laico, retroagindo a campanha para uma espécie de
udenismo tardio.
Penso que a
campanha de Dilma deve sempre, diante do aborto, passar ao próximo
ponto: o projeto de Brasil, de Nação. Recusar que a vida privada seja o
âmago do debate. Reclamar a tradição do Estado laico, inclusive a mais
ampla liberdade de opinião e de crença, e que nenhuma opinião ou crença
queira se impor à outra. Chamar Serra para o debate daquilo que importa.
Estabelecer as comparações entre o seu governo – os 10 anos da
experiência tucana – e a experiência do governo Lula. E discutir o
Brasil dos próximos anos. Disso, na verdade, é que Serra está fugindo.
Dilma, pela sua
experiência, pode dizer com orgulho que respeita e ama a vida. Enfrentou
situações de terror em sua vida, como a tortura, que é uma
situação-limite, que exige dignidade, compromisso com a causa da
liberdade. Não precisa explicar mais nada quanto a isso, quanto ao seu
amor pela vida. Trata-se de seguir adiante, defendendo todas as
extraordinárias conquistas do governo Lula, do qual ela foi sempre uma
peça essencial, e de propor a continuidade da revolução democrática que
começou em 2003.
Uma continuidade
que deverá fazer o Brasil avançar ainda mais na direção de um País justo
para todos, um País que cultive a liberdade sempre, que cultive a
democracia, como o faz hoje como nunca. Esta campanha não pode ser um
aborto. Reclama-se seja uma campanha política, com discussão política,
sobre projetos de Nação, projetos para a sociedade brasileira.
*jornalista e escritor
Terra Magazine