Receitagate: A exploração política do caso é exagerada por Renato Janine Ribeiro
"Cortem-lhe a cabeça!", disse a rainha. "Mas sem processo?",
perguntou Alice. "Primeiro a condenação e depois o processo", explicou a
rainha. "No meu país é o contrário", retrucou Alice. "Aqui, não",
concluiu a rainha."
Lembro dessa cena de "Alice no País das Maravilhas"
quando leio o inflacionado debate sobre algo que é erradíssimo – a
violação do sigilo fiscal de cinco nomes do PSDB, de centenas de outras
pessoas na agência Mauá da Receita e de centenas de milhares de
declarações de renda vendidas na rua 25 de Março (em SP).
Mas a exploração política do caso é exagerada. Aquele que retirou a
declaração de Veronica Serra não é respeitado nem pelos jornalistas.
Nada nele demonstra estilo petista, embora tenha aderido ao PT logo após
a vitória de Lula -adesão que, pelo visto, não levou a nada. Mas os
jornalistas creem numa única afirmação dele: o episódio visaria a
prejudicar José Serra (PSDB).
Por que essa seleção do que merece crédito? Ainda mais levando em
conta que, se alguém pode ser prejudicado, é Dilma Rousseff (PT). Na
verdade, afora o fato de que declarações de renda são vendidas na rua há
anos, o que me preocupa de imediato são duas coisas. A primeira é que a
imprensa abriu mão de cobrir, a sério, as eleições. O Paraná, por
exemplo, vive um pleito complexo, mas os jornais apenas repetem
descrições, sem explicar como uma sociedade rica tem uma política pobre.
Esse é um exemplo entre muitos. A cobertura eleitoral é função dos
institutos de pesquisa, dos escândalos e, bem pouco, do trabalho dos
repórteres. Isso augura mal para o futuro de uma profissão que um dia
quis exercer. O outro ponto: sem provas da ligação do detestável delito
com a candidatura Dilma, o candidato que está atrás nas pesquisas quer
anular na Justiça os votos dela.
Se for jogo de cena para levar ao segundo turno, não é bonito, mas vá
lá. Se for uma tentativa de anular 60% dos votos válidos e empossar um
presidente votado por 25% dos eleitores, será um golpe fatal na nossa
democracia. Melhor seria a oposição e a imprensa que a apoia aceitarem
que nas eleições se perde e se ganha, que elas não são uma guerra em que
se mata o inimigo, mas uma competição em que o povo escolhe o preferido
para cada cargo.
E o povo não merece que se destrua a democracia, que a discussão
política se reduza a uma crônica policial ou que os vários lados fiquem
de birra um com o outro.
Teremos, todos nós, que construir este país, pelo resto de nossas vidas.
Melhor evitar paixões e atos que tornem, depois, difícil a colaboração,
pelo menos entre quem gosta do Brasil.
* RENATO JANINE RIBEIRO é professor titular de
ética e filosofia política do Departamento de Filosofia da USP. Foi
diretor de Avaliação da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior), do Ministério da Educação (2004-08), no governo
Lula.
Artigo publicado originalmente na Folha de São Paulo