República dos policiais “hipsters” e dos operadores jurídicos do “timing”, por Armando Coelho Neto
Na obra, “A Corrosão do Caráter”, o pesquisador norte-americano Richard Sennet analisa a evolução das relações de trabalho no novo capitalismo e as consequências pessoais. Ele aponta que antes o trabalhador de grandes empresas (como General Motors,
IBM e outras) era considerado um ativo da companhia, crescia com ela e desenvolvia uma linha de solidariedade para com a corporação. Atualmente, mudou. Os funcionários, mesmo grandes executivos, são considerados temporários e descartáveis, e isso faz com que tais empregados desenvolvam as suas carreiras como se eles próprios fossem produtos, sem um vínculo real com a empresa, mas com um foco na “vendabilidade” da sua singular capacidade de trabalho, inovação ou rede de apoio.
Essa é uma realidade disseminada pela globalização e absorvida inclusive no Brasil, onde também migrou para o setor público. Os servidores almejam se destacar a qualquer custo. Essa busca pelo protagonismo tende a fazer diminuir o papel que antes ocupavam a lealdade ao coletivo e a hierarquia. Por outro lado, as individualidades restam fortalecidas e incentivadas, eis que as melhores oportunidades são atingidas pelos que mais se expõem (valorizados agora não pelas suas trajetórias discretas e austeras ou pelo conjunto das suas renúncias, mas antes pelo acúmulo dos seus sucessos episódicos).
Há setores do serviço público em que essa regra da primazia individual se demonstra muito presente. Ilustrativamente, aqueles que deveriam se ocupar da promoção da Justiça tem consumido suas forças na defesa dos seus próprios interesses, em detrimento dos interesses públicos. Isso tem ocorrido por diversas maneiras, inclusive com a invasão de competências alheias. Caso, por exemplo, do Ministério Público Federal, que de há muito invade atribuições da Polícia Federal. Pela Constituição Federal, a atividade investigatória é ato das polícias judiciárias estaduais e federal, esta última nos crimes contra bens, serviços ou interesses da União.
Em que pese a disposição constitucional, agentes ministeriais tem tomado cada vez mais iniciativas inquisitoriais, seja antecipando posicionamentos em casos mais rumorosos, seja privilegiando a atuação em casos de maior repercussão midiática, divulgando provas e fazendo ampliar sua ligação direta com setores da imprensa e do meio político, construindo para a instituição uma agenda personalíssima.
O sítio YouTube registra, a esse respeito, uma explanação didática sobre a trajetória do Ministério Público Federal. De autêntico guardião da Lei e da Constituição Federal, passou a algoz da Democracia. Trata-se de uma palestra do Procurador da República aposentado Eugênio José Guilherme de Aragão – ex-sub-Procurador-Geral da República e ex-Ministro da Justiça (Governo Dilma). Segundo ele, o corporativismo sem limites de membros da instituição passou a manobrar as prerrogativas conferidas pela Constituição Federal para pressionar Parlamento, Executivo e Judiciário para angariar crescentes vantagens em termos de influência e remuneração, aproveitando o apelo popular e midiático Operação Lava-Jato. Foram além com as tais dez medidas contra à corrupção.
Não é privilégio do Ministério Público. Todas as carreiras jurídicas, em maior ou menor medida, inclusive PF, seguiram tal trajetória. Todas com insaciável fome de poder. Representantes dessas carreiras reclamam, cada uma por si, a solução integral para os problemas nacionais. E não raro extrapolam suas precípuas atribuições para invadir searas alheias. É o que provam os inúmeros conflitos interinstitucionais. Quais as razões mais remotas para que se tenha alcançado um tal nível de infantilidade das autoridades estatais?
O ponto de partida para a análise desse fenômeno passa pelo reconhecimento das carências sociais, imensas desigualdades econômicas e da fragilidade cultural das classes menos favorecidas, que fazem a população refém do clientelismo e da corrupção. É um processo que se retroalimenta. A Sociedade Civil brasileira, assim, deficientemente organizada e timidamente atuante, deposita em certas lideranças e instituições a esperança de que os interesses coletivos sejam tutelados e defendidos.
Esse déficit organizacional é, por outro lado, o combustível que alimenta o discurso dos membros das carreiras jurídicas na defesa de suas prerrogativas (já superlativas), uma vez que todas as medidas que adotam (nos marcos legais vigentes) ou que propõem (como medidas de lege ferenda) são, para todos os efeitos, em nome dessa Sociedade carente e desprotegida.
A situação é paradoxal. Os concursos públicos cada vez mais difíceis, clamam por candidatos de elevadíssimo nível intelectual e de conhecimento técnico. Esse capital individual vem do apoio familiar e dedicação quase exclusiva aos estudos, o que só é possível nas classes econômicas mais altas. Desse modo, os cargos públicos se tornam privativos da meritocracia e em valores conservadores. E assim, exigem que o mundo fático se adeque aos seus postulados epistemológicos do “dever-ser”. Elegem a bandeira contra o desvio de recursos públicos como redenção para todos os males, sem atinar que a corrupção não é causa, mas o sintoma de uma Sociedade desigual.
Distantes da realidade social, como salvar o povo da fome, da ignorância, do clientelismo fora da luta política, sem prover saúde e assistência familiar, manter as garantias trabalhistas e previdenciárias, assegurar a sua mobilidade social, abolir o analfabetismo, dar-lhe meios mínimos de compreender a realidade e garantir a participação popular em um regime democrático (o qual supõe, sobretudo, não interditar a sua vontade eleitoral, manifestada pelo exercício do sufrágio)?
Pode-se conjecturar, contudo, que essa fragilidade de vastas parcelas da Sociedade seja um aspecto conveniente para ser explorado por tempo indefinido. É o que parece estar acontecendo no presente momento, em que já não mais interessa ajudar os desvalidos, mas sim tirar partido de sua vulnerabilidade. Na República dos policiais hipsters e dos operadores jurídicos do timing, essa hipossuficiência se tornou um lucrativo negócio corporativo.
NR – Agradeço a ajuda de um delegado federal neste texto.
Armando Rodrigues Coelho Neto é jornalista e advogado, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-representante da Interpol em São Paulo
Artigo publicado originalmente em https://jornalggn.com.br/noticia/republica-dos-policiais-“hipsters”-e-dos-operadores-juridicos-do-“timing”-por-armando-coelho-neto