Aldeia Nagô
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Repulsa ao sexo por Maria Rita Kehl

5 - 7 minutos de leituraModo Leitura

Este é o penúltimo texto escrito pela psicanalista antes de ser demitida do jornal O Estado de S. Paulo. Porém, trata de um tema mais atual do que nunca: o abort

Entre os três candidatos à presidência mais bem colocados nas
pesquisas, não sabemos a verdadeira posição de Dilma e de Serra.
Declaram-se contrários para não mexer num vespeiro que pode lhes custar
votos. Marina, evangélica, talvez diga a verdade. Sua posição é tão
conservadora nesse aspecto quanto em relação às pesquisas com
transgênicos ou células–tronco.

Mas o debate sobre a descriminalização do aborto não pode ser pautado
pela corrida eleitoral. Algumas considerações desinteressadas são
necessárias, ainda que dolorosas. A começar pelo óbvio: não se trata de
ser a favor do aborto. Ninguém é. O aborto é sempre a última saída para
uma gravidez indesejada. Não é política de controle de natalidade. Não é
curtição de adolescentes irresponsáveis, embora algumas vezes possa
resultar disso. É uma escolha dramática para a mulher que engravida e se
vê sem condições, psíquicas ou materiais, de assumir a maternidade. Se
nenhuma mulher passa impune por uma decisão dessas, a culpa e a dor que
ela sente com certeza são agravadas pela criminalização do procedimento.
O tom acusador dos que se opõem à legalização impede que a sociedade
brasileira crie alternativas éticas para que os casais possam ponderar
melhor antes, e conviver depois, da decisão de interromper uma gestação
indesejada ou impossível de ser levada a termo.

Além da perda à qual mulher nenhuma é indiferente, além do luto
inevitável, as jovens grávidas que pensam em abortar são levadas a arcar
com a pesada acusação de assassinato. O drama da gravidez indesejada é
agravado pela ilegalidade, a maldade dos moralistas e a incompreensão
geral. Ora, as razões que as levam a cogitar, ou praticar, um aborto,
raramente são levianas. São situações de abandono por parte de um
namorado, marido ou amante, que às vezes desaparecem sem nem saber que a
moça engravidou. Situações de pobreza e falta de perspectivas para
constituir uma família ou aumentar ainda mais a prole já numerosa. O
debate envolve políticas de saúde pública para as classes pobres. Da
classe média para cima, as moças pagam caro para abortar em clínicas
particulares, sem que seu drama seja discutido pelo padre e o juiz nas
páginas dos jornais.

O ponto, então, não é ser a favor do aborto. É ser contra sua
criminalização. Por pressões da CCNBB, o Ministro Paulo Vannucci
precisou excluir o direito ao aborto do recente Plano Nacional de
Direitos Humanos. Mas mesmo entre católicos não há pleno consenso. O
corajoso grupo das “Católicas pelo direito de decidir” reflete e discute
a sério as questões éticas que o aborto envolve.

O argumento da Igreja é a defesa intransigente da vida humana. Pois
bem: ninguém nega que o feto, desde a concepção, seja uma forma de vida.
Mas a partir de quantos meses passa a ser considerado uma vida humana?
Se não existe um critério científico decisivo, sugiro que examinemos as
práticas correntes nas sociedades modernas. Afinal, o conceito de humano
mudou muitas vezes ao longo da história. Data de 1537 a bula papal que
declarava que os índios do Novo Continente eram humanos, não bestas; o
debate, que versava sobre o direito a escravizar-se índios e negros,
estendeu-se até o século XVII.

A modernidade ampliou
enormemente os direitos da vida humana, ao declarar que todos devem ter
as mesmas chances e os mesmos direitos de pertencer à comunidade
desigual, mas universal, dos homens. No entanto, as práticas que
confirmam o direito a ser reconhecido como humano nunca incluíram o
feto. Sua humanidade não tem sido contemplada por nenhum dos rituais
simbólicos que identificam a vida biológica à espécie. Vejamos: os fetos
perdidos por abortos espontâneos não são batizados. A Igreja não exige
isto. Também não são enterrados. Sua curta existência não é imortalizada
numa sepultura – modo como quase todas as culturas humanas atestam a
passagem de seus semelhantes pelo reino desse mundo. Os fetos não são
incluídos em nenhum dos rituais, religiosos ou leigos, que registram a
existência de mais uma vida humana entre os vivos.

A ambigüidade da Igreja que se diz defensora da vida se revela na
condenação ao uso da camisinha mesmo diante do risco de contágio pelo
HIV, que ainda mata milhões de pessoas no mundo. A África, último
continente de maioria católica, paupérrimo (et pour cause…), tem 60% de
sua população infectada pelo HIV. O que diz o Papa? Que não façam sexo. A
favor da vida e contra o sexo – pena de morte para os pecadores
contaminados.

Ou talvez esta não seja uma condenação ao sexo: só à recente
liberdade sexual das mulheres. Enquanto a dupla moral favoreceu a
libertinagem dos bons cavalheiros cristãos, tudo bem. Mas a liberdade
sexual das mulheres, pior, das mães – este é o ponto! – é inadmissível.
Em mais de um debate público escutei o argumento de conservadores
linha-dura, de que a mulher que faz sexo sem planejar filhos tem que
agüentar as conseqüências. Eis a face cruel da criminalização do aborto:
trata-se de fazer, do filho, o castigo da mãe pecadora. Cai a máscara
que escondia a repulsa ao sexo: não se está brigando em defesa da vida,
ou da criança (que, em caso de fetos com malformações graves, não
chegarão viver poucas semanas). A obrigação de levar a termo a gravidez
indesejada não é mais que um modo de castigar a mulher que
desnaturalizou o sexo, ao separar seu prazer sexual da missão de
procriar.

Maria Rita Kell é Psicanalista e Escritora

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