Aldeia Nagô
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Sarney, o homem incomum por Leandro Fortes

6 - 8 minutos de leituraModo Leitura

Há anos, nem me lembro mais quantos, os principais colunistas e repórteres
de política do Brasil, sobretudo os de Brasília, reputam ao senador José Sarney
uma aura divinal de grande articulador político, uma espécie de gênio da raça
dotado do dom da ponderação, da mediação e do diálogo.






Na selva de preservação
de fontes que é o Congresso Nacional, estabeleceu-se entre os repórteres
ali lotados que gente como Sarney – ou como Antonio Carlos Magalhães, em tempos
não tão idos – não precisa ser olhada pelas raízes, mas apenas pelas folhagens.
Esse expediente é, no fim das contas, a razão desse descolamento absurdo do
jornalismo brasiliense da realidade política brasileira e, ato contínuo, da
desenvoltura criminosa com que deputados e senadores passeiam por certos
setores da mídia.

Olhassem Sarney como ele é, um coronel arcaico, chefe de um clã político que
há quatro décadas domina a ferro e fogo o Maranhão, estado mais miserável da
nação, os jornalistas brasileiros poderiam inaugurar um novo tipo de cobertura
política no Brasil. Começariam por ignorar as mentiras do senador (maranhense,
mas eleito pelo Amapá), o que reduziria a exposição de Sarney em mais de 90% no
noticiário nacional. No Maranhão, a família Sarney montou um feudo de cores
patéticas por onde desfilam parentes e aliados assentados em cargos públicos,
cada qual com uma cópia da chave do tesouro estadual, ao qual recorrem com
constância e avidez. O aparato de segurança é utilizado para perseguir a
população pobre e, não raras vezes, para trucidar opositores. A influência
política de Sarney foi forte o bastante para garantir a derrubada do g overnador
Jackson Lago, no início do ano, para que a filha, Roseana, fosse reentronizada
no cargo que, por direito, imaginam os Sarney, cabem a eles, os donatários do
lugar.

José Sarney é uma vergonha para o Brasil desde sempre. Desde antes da Nova
República, quando era um político subordinado à ditadura militar e um
representante mais do que típico da elite brasileira eleita pelos generais para
arruinar o projeto de nação – rico e popular – que se anunciava nos anos 1960.
Conservador, patrimonialista e cheio dessa falsa erudição tão típica aos
escritores de quinta, José Sarney foi o último pesadelo coletivo a nós
impingido pela ditadura, a mesma que ele, Sarney, vergonhosamente abandonou e
renegou quando dela não podia mais se locupletar. Talvez essa peculiaridade, a
de adesista profissional, seja o que de mais temerário e repulsivo o senador
José Sarney carregue na trouxa política que carrega Brasil afora, desde que um
mau destino o colocou na Presidência da República, em março de 1985, após a mor
te de Tancredo Neves.

Ainda assim, ao longo desses tantos anos, repórteres e colunistas
brasileiros insistiram na imagem brasiliense do Sarney cordial, erudito e
mestre em articulação política. É preciso percorrer o interior do Maranhão,
como já fiz em algumas oportunidades, para estabelecer a dimensão exata dessa
visão perversa e inaceitável do jornalismo político nacional, alegremente
autorizado por uma cobertura movida pelos interesses de uns e pelo
puxa-saquismo de outros. Ao olhar para Sarney, os repórteres do Congresso
Nacional deveriam visualizar as casas imundas de taipa e palha do sertão
maranhense, as pústulas dos olhos das crianças subnutridas daquele estado,
várias gerações marcadas pela verminose crÿnica e pela subnutrição idem. Aí,
saberiam o que perguntar ao senador, ao invés de elogiar-lhe e,
desgraçadamente, conceder-lhe salvo conduto p ara, apesar de ser o desastre que
sempre foi, voltar à presidência do Senado Federal.

Tem razão o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao afirmar, embora pela
lógica do absurdo, que José Sarney não pode ser julgado como um homem comum. É
verdade. O homem comum, esse que acorda cedo para trabalhar, que parte da
perspectiva diária da labuta incerta pelo alimento e pelo sucesso, esse homem,
que perde horas no transporte coletivo e nas muitas filas da vida para, no fim
do mês, decidir-se pelo descanso ou pelas contas, esse homem comum é,
basicamente, honesto e solidário. Sarney é o homem incomum. No futuro, Lula não
será julgado pela História somente por essa declaração infeliz e injusta, mas
por ter se submetido tão confortavelmente às chantagens políticas de José
Sarney, a ponto de achá-lo intocável e especial. Em nome da governabilidade,
esse conceito em forma de gosma fisiológica e imoral da qual se alimenta a
escór ia da política brasileira, Lula, como seus antecessores, achou a
justificativa prática para se aliar a gente como os Sarney, os Magalhães e os
Jucá.

Pelo apoio de José Sarney, o presidente entregou à própria sorte as mais de
seis milhões de almas do Maranhão, às quais, desde que assumiu a Presidência,
em janeiro de 2003, só foi visitar esse ano, quando das enchentes de outono,
mesmo assim, depois que Jackson Lago foi apeado do poder. Teria feito melhor e
engrandecido a própria biografia se tivesse descido em São Luís para visitar o
juiz Jorge Moreno. Ex-titular da comarca de Santa Quitéria, no sertão
maranhense, Moreno ficou conhecido mundialmente por ter conseguido erradicar
daquele município e de regiões próximas o sub-registro civil crÿnico, uma das
máculas das seguidas administrações da família Sarney no estado. Ao conceder
certidão de nascimento e carteira de identidade para 100% daquela população, o
juiz contaminou de cidadania uma massa de gente tratada, até então, com o gado
sarneyzista. Por conta disso, Jorge Moreno foi homenageado pelas Nações Unidas
e, no Brasil, viu o nome de Santa Quitéria virar nome de categoria do Prêmio
Direitos Humanos, concedido anualmente pela Secretaria Especial de Direitos
Humanos da Presidência da República a, justamente, aqueles que lutam contra o
sub-registro civil no País.

Em seguida, Jorge Moreno denunciou o uso eleitoral das verbas federais do
Programa Luz Para Todos pelos aliados de Sarney, sob o comando, então, do
ministro das Minas e Energia Silas Rondeau – este um empregado da família
colocado como ministro-títere dentro do governo Lula, mas de lá defenestrado
sob a acusação, da Polícia Federal, de comandar uma quadrilha especializada em
fraudar licitações públicas. Foi o bastante para o magistrado nunca mais poder
respirar no Maranhão. Em 2006, o Tribunal de Justiça do Maranhão, infestado de
aliados e parentes dos Sarney, afastou Moreno das funções de juiz de Santa
Quitéria, sob a acusação de que ele, ao denunciar as falcatruas do clã, estava
desenvolvendo uma ação político-partidária. Em abril passado, ele foi
aposentado, compulsoriamente, aos 42 anos de idade. Uma dos algozes do juiz, a
corregedora (?) do TRE maranhense, é a desembargadora Nelma Sarney, casada com
Ronaldo Sarney, irmão de José Sarney.

Há poucos dias, vi a cara do senador José Sarney na tribuna do Senado.
Trêmulo, pálido e murcho, tentava desmentir o indesmentível. Pego com a boca na
botija, o tribuno brilhante, erudito e ponderado, a raposa velha indispensável
aos planos de governabilidade do Brasil virou, de um dia para a noite, o
mascate dos atos secretos do Senado. Ao terminar de falar, havia se reduzido a
uma massa subnutrida de dignidade, famélica, anêmica pela falta da proteína da
verdade. Era um personagem bizarro enfiado, a socos de pilão, em um jaquetão
coberto de goma.

Na mesma hora, pensei no povo do Maranhão.

Artigo publicado originalmente no blog Brasília eu Vi

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