Sentimentos de amor por Luis Ramil
É impressionante como alguns
sentimentos se aninham em algumas pessoas e em outras pessoas não. Por
exemplo:
o amor.
Lembro-me que teria 9 ou
10 anos e vi um documentário que passou na TV sobre a guerra de Biafra.
Foi a
primeira vê que vi esses corpos magros, com a barriga inchada de fome,
crianças
moribundas com moscas nos olhos
Nós éramos muito pobres,
vivíamos em uma casa de madeira com chão de terra – um rancho, dizemos
aqui – um
casebre, dizem em outros lugares.
(Ao
escrever isto me vem a lembrança muito, muito
querida, do cheiro de querosene que saía, no inverno, de um aquecedor
que minha
mãe utilizava para cozinhar e esquentar a casa. Todos bem juntinhos, ao
redor do
aquecedor, passávamos as tarde, e éramos tão felizes!)
Bem, a questão foi que
essas imagens me atingiram como um murro. Também houve um fuzilamento:
os
soldados tinham um homem ajoelhado e o homem juntava as mãos e
implorava;
chorando pedia piedade. Os verdugos zombavam, cuspiam e batiam no homem
que
pedia socorro às câmaras. Os soldados riam; finalmente o assassinaram
frente às
câmaras.
Eu me fui ao canto mais
distante da minha casa para chorar. Era tanta a angústia que eu nem
sabia
explicar por que chorava. Minha mãe pensou que meu irmão maior, que
sempre me
molestava, me havia feito algo.
No outro dia, na escola,
os meninos falavam do tema, porque naquele tempo só havia dois canais de
TV, o
que havia feito com que muitos vissem o programa. Porém o que eles
discutiam era
se os negros eram assim (magros e barrigudos); ou se no homem haviam
disparado
de escopeta ou de fuzil, ou se fora um só disparo, ou vários. Quer
dizer, para
eles tinha sido um programa e nada mais; no se davam conta do drama e da
realidade.
Eu, sim, e começou a me
doer.
Tempos depois, penso que
já teria 12 anos, foi o noticiário da tarde que me trouxe a realidade. O
primeiro que vi foi uma multidão de gente enfrentando a polícia – os
jornalistas
diziam: Os operários dominam a cidade de Córdoba. Meu pai era
operário.
Nessa noite, quando chegou, vimos juntos as notícias da noite: os
operários e os
estudantes continuavam ganhando, porém havia também crianças e mulheres,
enfim… todo o povo. Três dias duraram os distúrbios, o
enfrentamento… a
confusão.
Meu pai era um operário,
porém me explicou como pode que essa gente estava contra a ditadura. Eu
sabia
que havia um presidente militar, porém não sabia o que era uma ditadura –
meu
pai me explicou.
Na noite do segundo dia
chegou o exército. Meu pai pôs-se furioso, dizia palavrões, insultava o
televisor. Nós estávamos em
Buenos Aires, a 800
km de Córdoba, porém vivíamos como se estivéssemos lá.
Mamãe chorava e se persignava a cada momento; nunca vi meu pai tão
encolerizado.
No terceiro dia os
militares dominaram a situação. A TV mostrava uma quantidade de corpos
cobertos
com mantas e depois uma comprida fila de pessoas com as mãos amarradas,
levadas
a empurrões e gritos para os caminhões nos quais seriam transportadas
para a
prisão.
Os soldados se portavam
com a mesma brutalidade e soberba que os soldados africanos, porém dessa
vez
nenhum prisioneiro pedia clemência. Vi seguir mulheres, homens e
crianças para a
prisão e a tortura com os dedos em V, quer dizer, fazendo o sinal da
vitória, e
embora a TV não lhe desse áudio, alguns detidos feridos e sangrando
gritavam
palavras de ordem contra os militares. No havia áudio, porém de alguma
maneira
eu entendia o que estavam gritando.
Em casa olhávamos a TV em
silêncio, tristes, como que em um velório. De repente meu pai saltou da
cadeira
e gritou: "Vejam, vejam, estão cantando a marchinha!" (ele se referia a
marcha
peronista, total e absolutamente proibida desde o ano de 1955, e que era
o
símbolo da resistência peronista). Os militares repartiam golpes e
pancadas de
culatras, porém os prisioneiros seguiam cantando. A esse gesto se chamou
"o
cordovaço".
No fim do ano caiu essa
ditadura, porém veio outra, e depois outra.
Aos 14 anos me juntei à
luta e comecei a militar.
Eu te conto tudo isto
porque o calor, o sentimento que senti ao ver as injustiças na África e
depois
na minha própria terra, ainda que a minha pátria seja o mundo todo, tem
um nome:
chama-se AMOR, e eu o sinto pelos despossuídos, pelos maltratados, e
como dizia
o Che, pelos ofendidos.
O amor é o que me guia,
como guiou ao Che e a tantos outros.
Autoria: Luis
Ramil (Argentina)
Tradução: Urda Alice Klueger (Brasil)