Será que o Brasil está virando Sucupira e há uma epidemia de Odoricos? Por Mario Rosa
O genial Dias Gomes não criou o antológico personagem da velha novela “O Bem Amado”, o prefeito Odorico Paraguaçu, da remota cidade de Sucupira, perdida num longínquo interior baiano.
Dias Gomes apenas plasmou num personagem todos os trejeitos da velha política dos grotões como quem faz uma colcha de retalhos.
Odorico (os mais jovens vejam aí no YouTube) era e é a síntese do Brasil profundo. Seu grande projeto era inaugurar um cemitério novo na cidade. Seu grande obstáculo, a falta de defuntos. Sua grande marca, a retórica ao mesmo tempo cafona, grandiloquente e vazia de seus pronunciamentos.
“Essa cidade, mui justamente chamada, apelidada e, por que não dizer, cognominada a Pérola do Norte, pela boniteza de sua paisagem, pelo arejamento e, por que não dizer, pela frescura do seu clima…”, discursava o impagável Odorico numa das magistrais performances do ator que lhe deu vida nas telas, o imortal Paulo Gracindo.
Essa é apenas uma pequena canja do estilo arrebatador de Odorico de conduzir os debates públicos no mundo da Sucupira imaginária. Na Sucupira real em que vivemos e na qual Dias Gomes se baseou, ainda podemos ouvir os ecos da eloquência vazia em muitas de nossas contendas.
O Brasil tem uma tradição de estar sempre se transformando para manter-se essencialmente igual. E nunca tivemos tantos Odoricos a plenos pulmões.
Um dos maiores problemas do país hoje é o desemprego dos jovens. Pesquisa recente da Organização Internacional do Trabalho mostra que 30% deles estão desempregados, na faixa entre 15 e 30 anos. E cadê isso nos debates? Os jovens são uma força tremenda nas próximas eleições de Sucupira. Só não existem nas gargantas e nas ações de Odorico.
Enquanto isso, os Odoricos se aferram a uma pauta que parece vinda de um folhetim, presos aos seus personagens fictícios, aos seus papéis inflexíveis, às suas pautas que recebem aplausos e vaias dos mesmos espectadores.
Neste ano, quase 23 milhões de jovens podem ir às urnas. O desemprego os corrói. Enquanto isso, em Sucupira, os grandes debates são sobre cemitérios e defuntos. E esse é apenas um exemplo de como nosso debate político ficou prisioneiro de papéis monolíticos.
Aqui não vai nenhuma crítica. Já disse inúmeras vezes que, como colunista, tento ser um jurado de programa de calouros. Os temas são os que entram no palco para cantarem uma música e serem vaiados ou aplaudidos pela plateia.
Como jurado, busco inspiração na minha musa Elke Maravilha: chamo todos de “lindinho” e só dou nota dez. Mas é inevitável não lembrar de Odorico nesses tempos de debates acalorados. Quantas vezes não ouvimos bravatas e frases gongóricas que são como fumaça espessa? Chamam muita atenção mas se dissipam no ar porque fumaças, mesmo espessas, não são sólidas.
Na novela, as investidas retóricas de Odorico eram antes de tudo um recurso para entreter. Será que não acontece o mesmo em nossa vida pública?
Às vezes vejo o noticiário e as análises sobre ele como um grande roteiro de dramaturgia, onde os protagonistas não vocalizam suas reais convicções, mas encarnam cada vez mais o personagem que acreditam representar.
Decisões são tomadas ou não tomadas não porque sejam as mais corretas, mas porque são as que combinam mais com o personagem a quem cabe decidir. Então, não se trata mais de decidir. De avaliar. De julgar. Trata-se de compor um personagem para a plateia?
A vida pública é e sempre foi um palco e a teatralização é inevitável. Certa vez, perguntaram ao ex-presidente Bill Clinton como ele definia a política. Ele respondeu:
– A política é igual a Hollywood, só que com gente feia.
A grande questão dos nossos dias não é se a teatralização dos debates públicos é boa ou ruim, já que em algum sentido isso é uma característica inerente a essa atividade. O ponto sensível é saber se os protagonistas –e aqui não apenas os políticos, mas todos que participam do debate, inclusive a mídia– devem ou não agir de acordo com roteiros pré-programados e apenas performarem um papel estabelecido por uma dramaturgia esquemática ou se esse teatro comporta também improvisos, cacos, uma certa rebeldia autoral.
No 1º caso, os atores estariam apenas cumprindo um papel. No 2º, estariam criando seus próprios personagens na medida em que a peça –neste caso chamada História– se desenrolasse.
No mundo da ficção, Odorico Paraguaçu representava uma caricatura porque não conseguia agir fora dos limites estritos do roteiro que lhe foi imposto e que, a ele, cabia apenas seguir depois de decorar.
No mundo real, a existência de Odoricos representa uma renúncia àquilo que é mais valioso nas democracias: a coragem de agir de acordo com a própria consciência, sem os grilhões dos roteiros pré-estabelecidos que podem arrancar aplausos efêmeros. Mas a vida real exige mais do que performances teatrais.
No final das contas, a História não premia os melhores atores. Os Odoricos viram pó assim como suas elucubrações cerebrinas e seus complôs contra inimigos imaginários. Isso serve para entreter Sucupira por algum tempo, mas a cidade não precisa de personagens. Líderes e elites não seguem roteiros. Fazem História.
Sucupira parecia um lugar ensandecido e Odorico um pândego porque era como se a cidade fosse o centro do mundo. E Odorico deitava e rolava na ignorância dos humildes habitantes do lugar inventando de tempos em tempos mobilizações maquiavélicas e bizarras contra inimigos do mundo inteiro que queriam desestabilizar a Pérola do Norte. Isso lhe granjeava apoio efêmero e maquiava a falta de propósito de sua gestão.
Seus inimigos poderosos, claro, nem tomavam conhecimento de que a pacata cidadezinha estava sublevada contra eles. Sucupira vivia em permanente estado de alienação e Odorico surfava justmente nessa confusão toda para se perpetuar.
Seus opositores também ganhavam com o clima de hospício: tinham um grande adversário para se contrapor na disputa mesquinha pelo pequeno poder. Assim, Sucupira seguia em frente: todos cumprindo rigorosamente o seu papel, enquanto os problemas reais da cidade ficavam de lado.
Odorico era uma deformação, mas na medida em que todos seguiam e se posicionavam a partir da narrativa proposta por ele, no final das contas eram todos parte do mesmo elenco.
Para firmar meu ponto, termino citando Odorico, em seu famoso discurso (em inglês) em frente às Nações Unidas. Ele tinha ido lá para falar ao mundo em nome de Sucupira. A tradução aparecia em legendas:
– Senhoras e senhores, vamos colocar de lado os entretantos e vamos direto para os finalmentes. Eu estou aqui para matar a cobra e mostrar o pau. Porque comigo é pão pão, queijo queijo.
Aviso aos Odoricos: atores e líderes não são a mesma coisa, assim como espectadores e eleitores são diferentes. 2018 está aí.
Mario Rosa, 53 anos, é 1 dos mais renomados consultores de crise do Brasil. Pede que em sua biografia seja incluído o fato de ter sido jurado de miss Brasil e ter beijado o manto verde-rosa da Estação Primeira de Mangueira. Foi o autor do prefácio do primeiro plano de gerenciamento de crises do Exército Brasileiro. Atuou como jornalista e consultor.
Artigo publicado originalmente em https://www.poder360.com.br/opiniao/brasil/odorico-paraguacu-e-a-sintese-do-brasil-profundo-analisa-mario-rosa/