Sexismos à parte, por Marjorie Rodrigues
Devo confessar que, no começo do ano, estava um pouco apreensiva em relação
a como seria cobertura jornalística das eleições presidenciais. "Podem esperar
que vem muito sexismo por aí", cheguei a twittar.
Afinal, teríamos uma situação
inédita: duas mulheres entre os três candidatos mais bem colocados nas
pesquisas – sendo que uma delas representa o governo que a imprensa, tomando para si o papel de oposição, tanto tem se esforçado
para derrubar.
Vale lembrar que a participação das mulheres na política brasileira ainda
é muito tímida. Os partidos dizem ter
dificuldades para cumprir a cota de 30% de candidaturas femininas. Creio que este é um problema, acima
de tudo, cultural. As mulheres se candidatam pouco e as pessoas têm
desconfiança em votar nelas, em grande parte, devido à idéia de que mulher "não
serve" para política. De que os homens são racionais e as mulheres,
sentimentais. De que o comando econômico e político é território masculino,
enquanto às mulheres cabe o campo da domesticidade, do cuidado de crianças,
doentes e idosos; às mulheres cabe à moda, o enfeite, o supérfluo. Enquanto não
rompermos com a idéia arcaica e rígida de que há coisas "de menino" e coisas
"de menina", acredito que o aumento de mulheres em cargos eletivos será um
caminho árduo.
Enfim. A imprensa é um dos meios que formam o imaginário coletivo. Portanto, é
um dos meios pelos quais é disseminada esta mensagem de que mulher não serve
para governar. As últimas eleições presidenciais americanas, as quais
acompanhei com bastante entusiasmo, tiveram duas mulheres em posições de
destaque (Hillary Clinton e Sarah Palin) e foram um show de preconceito de gênero.
Logo, não pude deixar de pensar: como seriam as nossas eleições, nós que temos
uma mídia que
escancaradamente nos reduz a bundas, nos compara a objetos, dá espaço a vozes
ultraconservadoras e ridiculariza o movimento feminista? Como seriam as
nossas eleições, nós que temos uma mídia desenfreada, monopolizada, que fala o
que quer e muito raramente é punida por isso? Como seriam estas eleições num
país cujos principais humoristas acham racismo e sexismo o cúmulo do cool?
Já no ano passado, as perspectivas não eram das melhores. Há cerca de um ano, o
jornalista Marcelo Coelho publicou em seu blog um texto em que media o sex appeal de várias mulheres na política.
Jorge Pontual fez o mesmo no twitter, embora tenha voltado atrás e pedido
desculpas. Ruth de Aquino caiu no ridículo de entrevistar um psicanalista para
dar bronca nos tiques e trejeitos "pouco femininos" de Dilma:
"abaixa esse dedo em riste! Seja mais delicada!". Então, pensei: "ai, ai, ai.
Se a coisa já tá assim agora, imagine quando a campanha começar pra valer?".
Bom, de fato, a mídia não me decepcionou. Sexismo há, e muito. O trio
Estado-Folha-Globo (para não citar os jornais regionais, menores, que pegam
carona na cobertura destes) fez reportagens de, no mínimo, meia página sobre as
roupas, a maquiagem e as transformações
estéticas das candidatas. A Folha de S. Paulo chegou a entrevistar
o marido de Marina Silva, para ver se ele aprovava as mudanças que ela fez no
visual.
Já a revista Veja publicou uma matéria sobre "quão decisivo é o fator beleza numa eleição". (estranho…
Se é tão importante assim, por que nunca tinham escrito sobre o assunto? Só
foram escrever agora, que temos duas mulheres? Embora políticos homens sejam
citados na matéria, o foco são as mulheres. E são majoritariamente fotos de
mulheres que ilustram a reportagem).
Celso Kamura, o cabeleireiro responsável pela mudança no corte de Dilma, também
ganhou entrevistas extensas no caderno de política. É necessário?
É relevante? Acho que não. Mas, se fosse, cadê as entrevistas com o pessoal que
cuida do visual de Serra e de outros candidatos do sexo masculino? O pior foi a
ambiguidade utilizada pelo Estadão, na entrevista com Kamura: "este é o homem que faz a cabeça de Dilma". Recurso já
utilizado antes, pela revista Marie Claire, que intitulou uma entrevista com
Dilma com "a mulher do presidente".
(Particularmente, também vejo muito de sexismo na mania de chamarem a Dilma de
"poste" e dizerem que Lula será seu "tutor". Ora, Dilma foi Secretária de Minas
e Energia de um estado importante, Ministra das Minas e Energia e
Ministra-Chefe da Casa Civil. Que o carisma de Lula é algo importantíssimo na
campanha, não há dúvidas. Mas daí a usar a palavra "tutela", sei não. Sinto
cheiro de sexismo aí.
Mas Dilma tem se saído muito bem com isso. "Decidam: uns dizem que eu sou
mulher de ferro, outros dizem que sou um poste…", disse ela na famigerada
entrevista ao JN. A entrevista chamou a atenção das pessoas pelo nível de
grosseria e afetação do casal Bonner e Fátima. A mim, no entanto, o mais
chocante foi eles terem passado quase metade do tempo estipulado fazendo
inquisição sobre o temperamento, a postura, a conduta da candidata. Ora, a
opressão que nós, mulheres, sofremos está muito baseada em códigos de conduta:
não se vista assim, não fale assado, não cruze as pernas desse jeito. Eu jamais
esperaria que uma das primeiras perguntas da entrevista do JN fosse:
"candidata, é verdade que você é grossa?". Pô, que pergunta é essa?
Mas, como disse, a saída da candidata petista foi de mestre, apontando o óbvio:
não dá para uma pessoa ser mandona e capacho ao mesmo tempo. Dilma, ao dizer,
"decidam-se", deixou claras as limitações e contradições da mania de
dicotomizar as mulheres: ou puras ou putas, ou santas ou diabas, ou mandonas ou
submissas. Há toda uma miríade de meio-termos. As mulheres são mais complexas
do que isto)
Mas enfim, divago. Como dizia, sexismo não falta na cobertura. No entanto, ele
não tem tido o efeito sobre o eleitorado que eu pensei que fosse ter. Hillary
perdeu as primárias sendo amplamente ridicularizada. Dilma só se fortalece, só
cresce. Embora a imprensa chie, invente dossiês, tente reduzi-la a um poste ou
um bibelô, a candidata do PT avança nas pesquisas. A ponto de podermos até
pensar em uma vitória no primeiro turno.
Não sei quanto a vocês, mas eu me emociono deveras diante da possibilidade de
ter a primeira presidenta do Brasil. Ainda mais ganhando assim, de lavada,
contra um candidato autoritário, tacanho, que sequer a própria campanha foi
capaz de conduzir sem trapalhadas. Ainda mais sabendo que não é qualquer
mulher. É uma baita mulher.
Claro que a gente deve evitar o clima de "já ganhou". Até outubro, tem chão.
Mas estou otimista. Não tem como não ficar otimista ao ver essa discrepância
entre as pesquisas e a cobertura jornalística. É um sinal não só de que o
sexismo tem menos poder do que eu pensava, mas também de que a imprensa
tradicional está perdendo um tiquinho de seu poder.
E, caso Dilma seja mesmo eleita, um bom horizonte se abre. Ter uma mulher no
cargo mais importante da república, um cargo de extrema visibilidade, será um
incentivo e tanto para que outras mulheres tomem coragem para se candidatar.
Para que outras mulheres tomem coragem para agir politicamente em suas
comunidades, municípios, estados. E, principalmente, para que parte do
eleitorado deixe de torcer o nariz para candidatas mulheres. Coisas boas hão de
vir.