Aldeia Nagô
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Sistema elétrico do Brasil não é frágil, atesta especialista Por Josette Goulart

13 - 18 minutos de leituraModo Leitura

Engenheiro Mário Veiga, da PSR Consultoria: discurso de que faltou investimento pode representar, se vitorioso, custo adicional para o consumidor.
Por Josette Goulart, no jornal Valor
Econômico


O apagão que afetou 18 Estados, retirou a maior usina
hidrelétrica do país do sistema e deixou São Paulo completamente às escuras foi
forte o bastante para que as culpas pudessem ser atribuídas ao governo, no clima
pré-eleitoral em que o país já vive. Especialistas independentes negam que o
sistema elétrico brasileiro seja frágil. O engenheiro eletricista Mário Veiga é
um deles. Ele preside uma das consultorias mais prestigiadas no setor elétrico,
a PSR Consultoria.

Com mestrado e doutorado na área de pesquisa
operacional, Veiga diz que o Brasil tem um sistema complexo como complexa é
qualquer rede elétrica, de qualquer país, e com equipamentos sujeitos a falhas.
Ele acredita que apesar da pressão política, a diretoria do Operador Nacional do
Sistema (ONS) está blindada e deve divulgar ainda hoje exatamente os fatores do
apagão da semana passada.

Com isso será possível consertar os erros e
seguir em frente na gestão do sistema. E alerta que o discurso de que o que
faltou foi investimento esconde um passivo futuro para o consumidor. O Valor
chegou ao nome de Veiga após consultar mais de 10 especialistas e executivos do
setor pedindo a indicação de um profundo – e isento – conhecedor do sistema
elétrico nacional.

Valor: O sistema elétrico no Brasil é
frágil?

Mário Veiga: Não, o sistema elétrico brasileiro
não é frágil. O que temos que fazer é separar o que é oferta de geração, que
está associada ao risco de racionamento de energia, a oferta de transmissão, que
é a infraestrutura que transporta essa geração até os centros de consumo, e a
infraestrutura de gestão, quer dizer, a operação segundo a segundo nesse
sistema. Na parte de geração estamos até com excesso de oferta, o que permite
que Brasil absorva com facilidade taxas altas de crescimento do PIB.

A
parte de transmissão acompanha a parte de geração. Os leilões de construção de
linhas são feitos para que as linhas necessárias e reforços estejam prontos
quando entrarem novos geradores no sistema. Nos últimos nove anos, foram
licitados – e a maior parte construídos -, cerca de 32 mil quilômetros de linha
de alta tensão. Comparado ao comprimento total hoje, de 80 mil quilômetros,
nota-se que os investimentos foram significativos em transmissão. Então, estamos
bem na parte de geração e de infraestrutura de
transmissão.

Valor: E na parte de gestão de infraestrutura, que
tem recebido tantas críticas?

Veiga: Na parte de
gestão, as medidas que foram tomadas quando houve a reforma do setor foram de,
primeiramente, centralizar a autoridade da operação no ONS. O ONS tem total
autonomia e autoridade para operar o sistema minuto a minuto, da maneira mais
eficiente possível. Esse é um desafio para qualquer operador do mundo, porque a
cada segundo o total de energia produzida tem que ser exatamente igual ao de
energia consumida. Essa operação é feita em três horizontes.

Num olhar
para os próximos três a cinco anos é que, estrategicamente, se decide como usar
os reservatórios do país. Isso é feito por um processo de otimização bastante
sofisticado, que leva em consideração literalmente bilhões de combinações de
cenários futuros. Depois, essa decisão é detalhada na programação para as
próximas 24 horas, em que o ONS, em coordenação com os centros regionais,
determina o cronograma de produção de cada usina. Depois vai para o tempo real,
em que, de segundo a segundo, a operação do sistema é ajustada para ficar sempre
igual à demanda.

Valor: Parece um processo
simples…

Veiga: A rede elétrica foi considerada há
alguns anos pela academia americana de engenharia como o sistema mais complexo
jamais feito pelo ser humano. É a máquina mais complexa já feita. Isso porque
existem centenas de milhares de componentes que têm que funcionar, segundo a
segundo, como o programado. A vantagem desse sistema é permitir que geração
barata chegue à casa dos consumidores.

Quando a energia elétrica foi
produzida e distribuída em escala comercial pela primeira vez, com a descoberta
de Thomas Edison, cada quarteirão tinha seu próprio gerador, porque não havia
capacidade de transmitir energia a distancias muito longas. Isso teria a
vantagem de nunca haver um blecaute, porque é como se cada quarteirão fosse um
sistema isolado.

A desvantagem é que esses geradores funcionavam a óleo
e eram caríssimos. Quando foi inventado o sistema de corrente alternada, isso
permitiu que fossem construídas linhas de transmissão de longas distâncias. Se
poderia, assim, construir mais longe um gerador maior e, portanto, mais barato,
por causa da economia de escala. Então rapidamente, no mundo inteiro, os
sistemas deixaram de ser isolados para se integrarem. Foi um processo que
beneficiou os consumidores, porque contribuiu para reduzir o custo de
energia.

Valor: Não foi diferente no caso do Brasil, certo?

Veiga: No caso do Brasil, isso era fundamental por causa das
usinas hidrelétricas. Se você pega o exemplo do Equador ou Peru, que são países
de tamanho menor, um evento meteorológico pode causar uma seca simultânea em
todo o país. O Brasil, por ter área muito grande, tem várias regiões climáticas.
A vantagem de termos uma rede interligada é que pode funcionar como se fosse um
portfólio.

Igualzinho quando a pessoa tem varias ações na bolsa de
valores para poder diversificar o risco. Quando chove na região Norte, não chove
no Nordeste, quando chove no Sudeste, não chove no Sul. Então eu posso
aproveitar muito melhor essa diversidade de produção hidrelétrica e ter um
sistema com muita participação hidráulica, mas que seja seguro.

O que o
operador nacional faz permanentemente é, atraves do modelo de otimização, buscar
energia de onde está chovendo, onde os reservatórios estão melhores, e
transferir para regiões onde está chovendo menos e os reservatórios estão mais
vazios. Isso permitiu ao longo do tempo que a produção de energia fosse muito
eficiente e transferiu o benefício da energia mais barata possível para o
consumidor.

Valor: Mas também traz o risco de apagões
maiores?

Veiga: O fato de as hidrelétricas estarem
localizadas a milhares de quilômetros dos centros de consumo torna a operação
mais complexa do que naturalmente já é. Você tem cada vez mais a possibilidade
do sistema entrar no que se chama de oscilação e que pode se traduzir em um
apagão.

Valor: Como acontece essa
oscilação?

Veiga: A cada segundo você tem fluxo de
energia passando em todas as linhas de transmissão do sistema. Evidente que uma
linha pode falhar. Pode cair um raio, pode haver uma falha nos componentes.
Quando a linha falha é preciso tirá-la de operação e desligá-la. Isso é feito
porque, se ela se danificar, vai levar meses para consertá-la e colocá-la de
volta no sistema.

Se essa linha é desligada, a energia que estava
passando por ali, automaticamente, numa fração de segundo, vai por um outro
caminho, porque a energia não pode desaparecer. Se der azar de que nesse outro
caminho já estava passando quantidade grande de energia, ele vai ficar
sobrecarregado.

Nesse caso, equipamentos chamados relés identificam que
aquele caminho está transferindo mais energia do que aguenta e a segunda linha
também é desligada. A energia associada ao primeiro caminho, mais a energia do
segundo, vai por um terceiro caminho, que por sua vez pode dar o azar de ser
sobrecarregado e assim por diante. Aí se tem o efeito cascata e o apagão.

Valor: O senhor usou muito a expressão "se der o azar". Então
é azar mesmo?

Veiga: É um pouco de azar sim, pelo
seguinte: o operador do sistema não tem, em nenhum país, o controle de quanto
fluxo está passando em cada linha, porque os fluxos se distribuem de acordo com
as chamadas leis de Kirchhoff. Se eu tenho duas linhas em paralelo, eu não posso
forçar que em uma linha passe uma quantidade de energia, e em outra linha, outra
quantidade. A natureza automaticamente distribui a energia entre as duas linhas
em função das características elétricas das linhas.

Valor: Não
há tecnologia para se medir esse fluxo?

Veiga: Poderia
se fazer por meio de links de corrente contínua. Mas seria
caríssimo.

Valor: Então ficamos à mercê das leis de
Kirchhoff?

Veiga: Quando se planeja a transmissão, é
feita uma série de simulações com milhões de cenários, que permitem que seja
possível levar em consideração que os fluxos se distribuem de determinada
maneira. É simulada a retirada de cada linha, uma a uma, para verificar por onde
passariam os fluxos e garantir que, tirando uma linha, esses fluxos ainda
passariam por uma outra linha e não teriam problemas.

O sistema é
planejado para levar em consideração que os equipamentos falham. Porque eles
falham mesmo. Então o sistema é desenhado levando em consideração que linhas
podem falhar e é colocado um reforço no sistema, isto é, se criam caminhos
alternativos de transporte de energia.

Valor: Aparentemente não
havia esse caminho alternativo na semana passada.

Veiga:
Existe um problema particular quando se tem uma usina como Itaipu. Ela é
muito grande, responde por 20% da geração do país, e está a 900 quilômetros do
centro de carga. Então é como se todos os caminhos andassem juntos. Mas o
sistema de Itaipu é protegido e não é qualquer raio que o derruba. Se pode
perder uma linha, até duas linhas, que não dá problema. Mas ninguém desenhou ou
projetou o sistema para a saída de três linhas de operação, como disse o ONS. E
não é uma questão de colocar mais reforços, pois custariam centenas de milhões
de reais, que onerariam a conta do consumidor.

Valor: Não há
margem de manobra, então, quando caem as três linhas que ligam Itaipu ao
Sudeste?

Veiga: O que torna a operação ainda mais
complicada é que, como estes fenômenos ocorrem em frações de segundos, o ser
humano não tem tempo de agir. É por isso que se faz uma pré-programação e o
sistema está preparado para, quando determinada linha receber fluxo maior, que
ela seja desligada. Mas algumas vezes pode acontecer de o equipamento falhar e
não acionar a instrução dada para se desligar a linha. Aí aquilo que devia estar
desligado continua ligado e se começa a ter problemas, porque toda a coreografia
previamente ensaiada pode começar a falhar.

Valor: O sr. não
acha que a explicação da causa do apagão está demorando?

Veiga:
Amanhã (hoje) vai sair a análise do ONS do que aconteceu. A demora é
justificável, porque o sistema possui registros segundo a segundo do que
aconteceu, como se fossem caixas pretas. O que os técnicos estão fazendo é
olhando essas caixas pretas e verificando cada relé, cada chave, cada disjuntor
para saber o que aconteceu.

Valor: Por essa complexidade,
parece que não é fora do normal ter demorado para voltar a luz…

Veiga: Sim e não. Porque você também se prepara para a
falha. Imagine que houve um blecaute num país e toda a demanda desapareceu. A
linha pode ser religada em frações de segundo, mas isso não é feito, porque
quando existe uma falha do país inteiro o operador sabe qual era o consumo um
segundo antes de dar o problema, só que quando falta a luz, as pessoas desligam
seus equipamentos.

O operador tem um problema complicado, porque ele não
sabe qual a demanda que vai ter no sistema quando ele religar. Vamos imaginar
que o sistema estava consumindo 50 mil MW na hora que caiu a energia, mas
pessoas desligaram seus aparelhos e a carga, se fosse religada, seria de 30 mil
MW. Mas operador estimou 40 mil MW e se ele religar haverá novo desequilíbrio e
o sistema cai de novo.

Por isso é feita uma divisão no sistema, já
pré-programada, que se chama de ilhamento. Se o ilhamento funcionar você
continua tendo o sistema que caiu, mas sabe que ele foi isolado. Agora existem
vários megaquarteirões e se começa a recuperar a geração para cada um
separadamente. O ideal, que qualquer centro de controle busca, é que as falhas
não ocorram, mas se ocorrerem que se consiga fazer o desligamento de maneira
organizada.

No relatório do ONS, um dos assuntos que vai ser discutido é
se esse esquema de desligamento funcionou 100% como esperado ou, se pela
magnitude da falha, não teria condições físicas de esse esquema funcionar. O que
significa que caiu mais energia do que se esperava. Se pode usar o script mas
também é preciso usar a experiência do operador.

Valor: Nunca
se cogitou a possibilidade de Itaipu sair do sistema?

Veiga:
Não posso falar pelo ONS, mas em nenhum lugar do mundo se planeja o
sistema para falharem três linhas de transmissão como aconteceu na semana
passada. Certamente foi um evento absolutamente inesperado. O importante é saber
se as três linhas falharam por um azar imenso, ou se houve uma causa comum, um
megarraio nas três linhas, ou se na verdade quando uma falhou, houve algum
problema na proteção que, de alguma maneira – isso certamente o ONS vai
esclarecer -, teria levado à falha das outras duas.

Então é o seguinte:
se deu um azar cósmico e falharam as três ao mesmo tempo por razões
independentes, aí realmente é um azar gigantesco e é muito pouco provável mesmo.
O que é mais provável é terem falhado uma ou duas das linhas e ter havido mais
um incidente que levou à falha da terceira. Em geral, as falhas que causam
problemas nunca são espetaculares. São uma combinação inesperada de fatores que,
cada um isoladamente, não traria problemas.

Valor: Poderia ter
sido evitado este apagão?

Veiga: Prevenir-se do
conjunto de pequenas causas é um grande desafio, porque estamos falando de
milhares e milhares de componentes, e quando você pensa em todas as combinações
de pequenos acidentes que podem no conjunto dar errado, você estaria analisando
bilhões ou trilhões de possíveis causas. Tenta-se da melhor maneira possível se
prevenir, com reforços, com caminhos duplicados, mas sempre é possível acontecer
um problema.

Valor
: O fato de Itaipu naquele momento
estar gerando a plena capacidade pode ter contribuído?

Veiga:
Claro que se tivesse gerando pouco, e as três linhas falhassem, a
energia poderia passar pelas outras. Mas se durante seis anos, que foi o tempo
entre o último blecaute e agora, se tivesse criado um procedimento para Itaipu
nunca gerar a plena capacidade, se estaria deixando de utilizar a energia
hidrelétrica barata de Itaipu para utilizar algo mais caro. Quando se faz a
conta, se vê que isso possivelmente não era uma solução razoável. O fundamental
é que causas sejam explicadas, identificadas e erros corrigidos. Se foi algo
imprevisto, paciência, tem que melhorar.

Valor: De certa forma
o sistema formou um ilhamento, mas que abrangeu todo o
Sudeste…

Veiga: Quando se perde toda a energia de
Itaipu, não tem jeito, lembre que a cada segundo o total de geração tem que ser
o total de demanda, então se toda a energia de Itaipu sai do ar tenho que cortar
essa demanda, e nas áreas que são mais afetadas pela energia que foi embora.
Então não tem jeito, que o Sudeste ia ser cortado, ninguém tem dúvidas. A
questão que o ONS vai esclarecer é se pelo fato de ter havido falha mais severa
é que foi necessário cortar mais demanda do que a oferta de
Itaipu.

Valor: Então o Sudeste sempre vai ser afetado pela
saída de Itaipu?

Veiga: A gente fica traumatizado, mas
é bom lembrar que é a primeira vez na história que houve a saída de Itaipu. Se
Tucuruí falhar, vai afetar o Nordeste. Não tem almoço grátis. São os riscos que
traz uma energia limpa, barata. Mesmo com todos os esforços para evitar que
ocorram acidentes, nunca é impossível de se ter apagão. O importante sempre é
que as recomendações e aperfeiçoamentos sejam
implementados.

Valor: O sr. acredita que o ONS tem liberdade
para divulgar exatamente tudo o que aconteceu, ou vai existir pressão
política?

Veiga: Não imagino que haja pressão política
e uma das razões é que na lei do modelo do setor elétrico foi dada total
blindagem política para a diretoria do ONS. Embora o ONS seja empresa privada,
as empresas que contribuem não tem qualquer ingerência no ONS, nem o governo.
Essa blindagem existe para dar todas as condições de o operador fazer um
trabalho técnico, que sempre tem feito.

Valor
: A
experiência vivida em outros apagões foi
aproveitada?


Veiga:
Várias recomendações da análise dos
apagões de 1999 e 2003 foram aproveitadas. Não sei se todas, mas várias delas
com certeza foram. Mas este é um processo que tem que ser constante. E não se é
obrigado a implementar todas as propostas, porque alguma delas têm que comparar
custo e benefício para saber se vale à pena. O fato de não ser implementada não
significa que houve descuido ou descaso.

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