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Sobre o ‘pânico moral’ e a coragem de falar: o silêncio do Ocidente sobre Gaza. Por Ilan Pappé

5 - 7 minutos de leituraModo Leitura

Publicado originalmente por Palestine Chronicleem 19 de abril de 2025 e no Brasil 247

Os palestinos não têm o luxo de esperar que o pânico moral ocidental se manifeste ou tenha efeito

Os palestinos não têm o luxo de esperar que o pânico moral ocidental se manifeste ou tenha impacto. Não ceder a esse pânico é um pequeno, mas importante passo na construção de uma rede global pela Palestina, algo urgentemente necessário.

As respostas no mundo ocidental à situação na Faixa de Gaza e na Cisjordânia levantam uma questão perturbadora: por que o Ocidente oficial, e particularmente a Europa Ocidental oficial, é tão indiferente ao sofrimento dos palestinos?

Por que o Partido Democrata nos EUA é cúmplice, direta e indiretamente, na sustentação da desumanidade diária na Palestina — uma cumplicidade tão visível que provavelmente foi uma das razões pelas quais perderam a eleição, já que o voto árabe-estadunidense e progressista em estados-chave não pôde, e com razão, perdoar o governo Biden por sua participação no genocídio na Faixa de Gaza?

Essa é uma questão pertinente, dado que estamos lidando com um genocídio televisionado que agora foi renovado no terreno. É diferente de períodos anteriores em que a indiferença e a cumplicidade ocidentais foram exibidas, seja durante a Nakba ou nos longos anos de ocupação desde 1967.

Durante a Nakba e até 1967, não era fácil obter informações, e a opressão após 1967 foi em sua maioria incremental e, como tal, ignorada pela mídia e pela política ocidentais, que se recusaram a reconhecer o seu efeito cumulativo sobre os palestinos.

Mas esses últimos dezoito meses são muito diferentes. Ignorar o genocídio na Faixa de Gaza e a limpeza étnica na Cisjordânia só pode ser descrito como intencional e não por ignorância. Tanto as ações dos israelenses quanto o discurso que as acompanha são visíveis demais para serem ignorados — a menos que políticos, acadêmicos e jornalistas escolham fazê-lo.

Esse tipo de ignorância é, antes de tudo, o resultado de um lobby israelense bem-sucedido que prosperou no terreno fértil do complexo de culpa europeu, do racismo e da islamofobia. No caso dos EUA, é também o resultado de muitos anos de uma máquina de lobby eficaz e implacável que muito poucos na academia, na mídia e, em particular, na política ousam desobedecer

Esse fenômeno é conhecido, na pesquisa recente, como pânico moral, muito característico dos setores mais conscientes das sociedades ocidentais: intelectuais, jornalistas e artistas.

Pânico moral é uma situação na qual uma pessoa tem medo de aderir às suas próprias convicções morais porque isso exigiria alguma coragem que poderia ter consequências. Nem sempre somos testados em situações que exigem coragem — ou pelo menos integridade. Quando isso acontece, é em situações em que a moralidade não é uma ideia abstrata, mas um chamado à ação.

É por isso que tantos alemães permaneceram em silêncio quando os judeus foram enviados para campos de extermínio, e é por isso que os estadunidenses brancos ficaram parados quando os afro-americanos foram linchados ou, anteriormente, escravizados e abusados.

Qual é o preço que jornalistas ocidentais de destaque, políticos veteranos, professores titulares ou CEOs de empresas conhecidas teriam que pagar se culpassem Israel por cometer um genocídio na Faixa de Gaza?

Parece que eles estão preocupados com dois possíveis desfechos. O primeiro é serem condenados como antissemitas ou negacionistas do Holocausto, e o segundo é o medo de que a sua resposta honesta desencadeie uma discussão que inclua a cumplicidade do seu país, ou da Europa, ou do Ocidente em geral, em permitir o genocídio e todas as políticas criminosas contra os palestinos que o precederam.

Esse pânico moral leva a alguns fenômenos espantosos. Em geral, ele transforma pessoas instruídas, altamente articuladas e bem informadas em completos imbecis quando falam sobre a Palestina. Ele impede que membros mais perceptivos e reflexivos dos serviços de segurança examinem as exigências israelenses de incluir toda a resistência palestina numa lista de terrorismo, e desumaniza as vítimas palestinas na mídia dominante.

A falta de compaixão e solidariedade básica com as vítimas do genocídio foi exposta pelos dois pesos e duas medidas demonstrados pela grande mídia no Ocidente, e em particular pelos jornais mais estabelecidos dos EUA, como o The New York Times e o The Washington Post. Quando o editor do Palestine Chronicle, Dr. Ramzy Baroud, perdeu 56 membros de sua família — mortos pela campanha genocida israelense na Faixa de Gaza —, nenhum dos seus colegas no jornalismo estadunidense se deu ao trabalho de falar com ele ou demonstrar qualquer interesse em ouvir sobre essa atrocidade. Por outro lado, uma alegação israelense fabricada de uma conexão entre o Chronicle e uma família cujo bloco de apartamentos abrigava reféns despertou enorme interesse por parte desses veículos e atraiu a sua atenção.Esse desequilíbrio em humanidade e solidariedade é apenas um exemplo das distorções que o pânico moral traz consigo. Tenho poucas dúvidas de que as ações contra estudantes palestinos ou pró-palestinos nos EUA, ou contra ativistas conhecidos no Reino Unido e na França, bem como a prisão do editor da Electronic Intifada, Ali Abunimah, na Suíça, são todas manifestações desse comportamento moral distorcido.Um caso semelhante aconteceu recentemente na Austrália. Mary Kostakidis, uma famosa jornalista australiana e ex-apresentadora do telejornal noturno SBS World News Australia, foi levada ao tribunal federal por sua cobertura — que se poderia dizer bastante moderada — da situação na Faixa de Gaza. O simples fato de que o tribunal não tenha rejeitado essa alegação assim que ela chegou mostra o quão profundamente enraizado está o pânico moral no Norte Global.

Mas há outro lado nisso. Felizmente, há um grupo muito maior de pessoas que não têm medo de assumir os riscos envolvidos em declarar claramente o seu apoio aos palestinos, e que demonstram essa solidariedade sabendo que isso pode levar à suspensão, deportação ou até à prisão. Elas não são facilmente encontradas na academia, na mídia ou na política tradicionais, mas são a voz autêntica de suas sociedades em muitas partes do mundo ocidental.

Os palestinos não têm o luxo de esperar que o pânico moral ocidental se manifeste ou tenha efeito. Não ceder a esse pânico é um pequeno, mas importante passo na construção de uma rede global pela Palestina que é urgentemente necessária — primeiro, para deter a destruição da Palestina e do seu povo, e depois para criar as condições para uma Palestina descolonizada e libertada no futuro.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor.

Ilan Pappé

Professor na Universidade de Exeter. Foi anteriormente professor titular de ciência política na Universidade de Haifa. É autor de The Ethnic Cleansing of Palestine, The Modern Middle East, A History of Modern Palestine: One Land, Two Peoples e Ten Myths about Israel. É coeditor, com Ramzy Baroud, de Our Vision for Liberation. Pappé é descrito como um dos “Novos Historiadores” de Israel que, desde a liberação de documentos relevantes dos governos britânico e israelense no início dos anos 1980, vêm reescrevendo a história da criação de Israel em 1948.

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