Aldeia Nagô
Facebook Facebook Instagram WhatsApp

Sobre o ‘sobre’. Por Antonio Prata

3 - 4 minutos de leituraModo Leitura
antonio-prata

Meu vizinho das quintas-feiras, Sérgio Rodrigues, já abordou o tema com muito mais propriedade do que eu seria capaz, mas ele tem me irritado tanto (o tema, não o Sérgio) que vou invadir o quintal alheio e bater na mesma tecla.

De um ano pra cá, comecei a ouvir frases do tipo “não é sobre opinião, é sobre respeito” ou “não é sobre alimentação, é sobre saúde”, “não é sobre direitos, é sobre deveres”.

A primeira vez que me deparei com este novo uso do “sobre”, pensei que estavam falando “sobre” algum filme, livro ou peça de teatro. A respeito de “Superman I”, por exemplo, poderíamos dizer que “não é sobre superpoderes, é sobre amor”. Assim como “Casa de Bonecas”, do Ibsen, “não é sobre um casamento, é sobre a liberdade”. Prestando mais atenção, porém, percebi que o sentido era outro. Era o “sobre” como “ter a ver com”. Trata-se de uma tradução troncha de “it’s not about”, que os anglófonos usam a torto e a direito. Ou melhor, nós usamos torto, eles usam direito.

Palavras são ferramentas, chaves que se encaixam perfeitamente nas delicadas fendas dos significados. Quando a gente usa a ferramenta errada, espana o parafuso. O que aumenta meu desconforto com o “sobre” é que nas frases em que ele é empregado tem sempre alguém nos dando uma lição e dizendo que não entendemos lhufas do assunto. É como se eu estivesse tentando aparafusar uma estante na parede, me afastassem da tarefa e assumissem o meu lugar usando uma faca de cozinha. Ou, para ligar a imagem à origem do problema: usando uma chave inglesa.

Tradução é um ofício dificílimo e muito mal pago, no Brasil. Razão pela qual, imagino, pipoquem entre nós tantos tiros no pé –da letra. Vira e mexe leio livros em que os personagens dizem que “costumavam” morar em tal rua. Isso, em português, significa que as pessoas moravam em tal rua de vez em quando. Segundas, quartas e sextas? E nas terças e quintas, se mudavam pra outro endereço? Esse “costumavam” é a tradução literal de “used to”, o que na língua de Camões poderia ser perfeitamente cortado se conjugássemos “morar” no pretérito imperfeito do indicativo: “moravam”.

Nos livros em que as pessoas “costumavam” morar em tal lugar (ou namorar tal garota ou estudar em tal escola), também costumam tomar, pela manhã, seu “desjejum” (“breakfast”). Me diga, amigo, você alguma vez se deparou com um “desjejum” que não fosse numa tradução ruim ou na receita de um nutricionista? No Brasil se toma café da manhã. (Em Portugal, “pequeno almoço”). Nestes mesmos livros, quando brigam, os personagens se ofendem com frases do tipo: “Oh, Johnny, que espécie de imbecil é você?!”. O amigo já disse ou já ouviu algum patrício dizer “oh”? E por mais que vicejem entre nós várias espécies de imbecis, não é do nosso feitio, num arranca-rabo, inquirir a qual linhagem o imbecil em questão se filia.

Não quero parecer arrogante. “Não é sobre preciosismo”, eu diria, aderindo à moda, “é sobre lógica”. Há frases que fazem sentido, outras que não. Já está tão difícil nos entendermos em bom português, imagina com todo mundo usando faca em parafuso e desrosqueando porca com alicate: acabaremos por estropiar de vez a fragilíssima máquina da comunicação. E antes que alguém se sinta pessoalmente ofendido, aviso: estou falando do modismo em geral, não de qualquer indivíduo em especial. Juro: “It’s not about you”

Artigo publicado originalmente na Folha de Sâo Paulo

Compartilhar:

Mais lidas