Soledad, a mulher do Cabo Anselmo por Urariano Mota
maioria dos brasileiros desconhece? De modo claro e curto, ela foi a
mulher do Cabo Anselmo, que ele entregou a Fleury em 1973. Sem remorso e
sem dor, o Cabo Anselmo a entregou grávida para a execução. Com mais
cinco militantes contra a ditadura, no que se convencionou chamar “O
massacre da granja São Bento”. Esse crime contra Soledad Barrett Viedma é
o caso mais eloquente da guerra suja da ditadura no Brasil.
A escolha se dá justo no momento em que se discute no Brasil a
instalação da Comissão da Verdade, que enfrenta muita resistência de
setores que insistem em manter na penumbra fatos ocorridos em um dos
períodos mais tenebrosos da história do Brasil. Publicamos a seguir um
artigo do escritor Urariano Mota, autor de um livro sobre Soledad
Viedma.
Em 1970, de
volta ao Brasil, Anselmo foi preso pela ditadura militar. Em troca da
liberdade, delatou perseguidos políticos ao delegado Sérgio Paranhos
Fleury, do Dops. A lista de denuciados incluía sua namorada, Soledad
Viedma, que acabou morta devido à tortura.
Quem lê "Soledad no
Recife" pergunta sempre qual a natureza da minha relação com Soledad
Barrett Viedma, a bela guerreira que foi mulher do Cabo Anselmo. Eu
sempre respondo que não fomos amantes, que não fomos namorados. Mas que a
amo, de um modo apaixonado e definitivo, enquanto vida eu tiver. Então
os leitores voltam, até mesmo a editora do livro, da Boitempo: "mas você
não a conheceu?". E lhes digo, sim, eu a conheci, depois da sua morte. E
explico, ou tento explicar.
Quem foi, quem é Soledad Barrett
Viedma? Qual a sua força e drama, que a maioria dos brasileiros
desconhece? De modo claro e curto, ela foi a mulher do Cabo Anselmo, que
ele entregou a Fleury em 1973. Sem remorso e sem dor, o Cabo Anselmo a
entregou grávida para a execução. Com mais cinco militantes contra a
ditadura, no que se convencionou chamar "O massacre da granja São
Bento". Essa execução coletiva é o ponto. No entanto, por mais
eloquente, essa coisa vil não diz tudo. E tudo é, ou quase tudo.
Entre
os assassinados existem pessoas inimagináveis a qualquer escritor de
ficção. Pauline Philipe Reichstul, presa aos chutes como um cão danado, a
ponto de se urinar e sangrar em público, teve anos depois o irmão,
Henri Philipe, como presidente da Petrobras. Jarbas Pereira Marques,
vendedor em uma livraria do Recife, arriscou e entregou a própria vida
para não sacrificar a da sua mulher, grávida, com o "bucho pela boca".
Apesar de apavorado, por saber que Fleury e Anselmo estavam à sua
procura, ele se negou a fugir, para que não fossem em cima da
companheira, muito frágil, conforme ele dizia. Que escritor épico seria
capaz de espelhar tal grandeza?
E Soledad Barrett Viedma não
cabe em um parêntese. Ela é o centro, a pessoa que grita, o ponto de
apoio de Arquimedes para esses crimes. Ainda que não fosse bela, de uma
beleza de causar espanto vestida até em roupas rústicas no treinamento
da guerrilha em Cuba; ainda que não houvesse transtornado o poeta Mario
Benedetti; ainda que não fosse a socialista marcada a navalha aos 17
anos em Montevidéu, por se negar a gritar Viva Hitler; ainda que não
fosse neta do escritor Rafael Barrett, um clássico, fundador da
literatura paraguaia; ainda assim… ainda assim o quê?
Soledad é
a pessoa que aponta para o espião José Anselmo dos Santos e lhe dá a
sentença: "Até o fim dos teus dias estás condenado, canalha. Aqui e além
deste século". Porque olhem só como sofre um coração. Para recuperar a
vida de Soledad, para cantar o amor a esta combatente de quatro povos,
tive que mergulhar e procurar entender a face do homem, quero dizer, a
face do indivíduo que lhe desferiu o golpe da infâmia. Tive que procurar
dele a maior proximidade possível, estudá-lo, procurar entendê-lo, e
dele posso dizer enfim: o Cabo Anselmo é um personagem que não existe
igual, na altura de covardia e frieza, em toda a literatura de
espionagem. Isso quer dizer: ele superou os agentes duplos, capazes
sempre de crimes realizados com perícia e serenidade. Mas para todos
eles há um limite: os espiões não chegam à traição da própria carne, da
mulher com quem se envolvem e do futuro filho. Se duvidam da perversão,
acompanhem o depoimento de Alípio Freire, escritor e jornalista,
ex-preso político:
"É impressionante o informe do senhor
Anselmo sobre aquele grupo de militantes – é um documento que foi
encontrado no Dops do Paraná. É algo absolutamente inimaginável e que,
de tão diferente de todas as ignomínias que conhecemos, nos faltam
palavras exatas para nos referirmos ao assunto.
Depois de
descrever e informar sobre cada um dos cinco outros camaradas que seriam
assassinados, referindo-se a Soledad (sobre a qual dá o histórico de
família, etc.), o que ele diz é mais ou menos o seguinte:
‘É
verdade que estou REALMENTE ENVOLVIDO pessoalmente com ela e, nesse
caso, SE FOR POSSÍVEL, gostaria que não fosse aplicada a solução final’.
Ao
longo da minha vida e desde muito cedo aprendi a metabolizar (sem
perder a ternura, jamais) as tragédias. Mas fiquei durante umas três
semanas acordando à noite, pensando e tentando entender esse abismo,
essa voragem".
Esse crime contra Soledad Barrett Viedma é o caso
mais eloquente da guerra suja da ditadura no Brasil. Vocês entendem
agora por que o livro é uma ficção que todo o mundo lê como uma relato
apaixonado. Não seria possível recriar Soledad de outra maneira. No
título, lá em cima, escrevi Soledad, a mulher do Cabo Anselmo. Melhor
seria ter escrito, Soledad, a mulher de todos os jovens brasileiros. Ou
Soledad, a mulher que apredemos a amar.
(*) Urariano Mota, 59
anos, é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife.
Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita,
Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é
colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da
Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já
veicularam seus textos. Autor de Os corações futuristas (Recife, Bagaço,
1997), um romance de formação, que se passa sob a ditadura de Emílio
Garrastazu Médici (1969-1974), e de Soledad no Recife (São Paulo,
Boitempo, 2009).
Artigo publicado originalmente em http://www.cartamaior.com.br