Superar estereótipo é primeiro passo para reduzir preconceito por marcelo Semer
Posse de Dilma deve impulsionar luta pela eliminação do preconceito de gênero. Onda de comentários sobre mulher de vice mostra que tarefa não será fácil.
Dia primeiro de janeiro de 2011, o país assistiu a cena até então
inédita: uma mulher recebendo a faixa de presidente da República e
passando em revista as tropas militares.
Enquanto o Brasil
parava para ouvir o discurso de Dilma, parte dos twitteiros que
acompanhavam plugados à cerimônia, se deliciava fazendo comentários
irônicos e maldosos sobre a primeira vice-dama, Marcela Temer.
Loira, jovem e ex-miss, a esposa de Michel Temer virou imediatamente um trending topic.
Foi
chamada de paquita, diminuída a seus atributos físicos e acusada de dar
o golpe do baú no marido poderoso e provecto. Tudo baseado na
consolidação de um enorme estereótipo: diante da diferença de idade que
supera quatro décadas e uma distância descomunal de poder, influência e
cultura, só poderia mesmo haver interesses.
Essa é uma pequena
mostra do quanto Dilma deve sofrer para romper as barreiras atávicas do
preconceito de gênero, ainda impregnadas na sociedade.
Se não fosse justamente pela superação dos estereótipos, aliás, Dilma jamais teria chegado aonde chegou.
Mulher. Divorciada. Guerrilheira. Ex-prisioneira. Quem diria que seria eleita para ser a chefe das Forças Armadas?
Superar estereótipos é o primeiro passo para romper preconceitos.
O exemplo de Lula mostrou, todavia, como sua tarefa não será fácil.
O
país aprendeu a conviver com a sapiência de um iletrado retirante, mas
os preconceitos regionais e o ódio de classe não se esvaziaram tão
facilmente. A avalanche das "mensagens assassinas", twitteiros
implorando por um "atirador de elite" na posse, só comprova o resultado
alcançado pelo terrorismo eleitoral.
Dilma sabe dos obstáculos a
vencer e é por este motivo que iniciou seu discurso enfatizando o
caráter histórico do momento que o país vivia, fazendo-se de exemplo
para "que todas as mulheres brasileiras sintam o orgulho e a alegria de
ser mulher".
Em dois discursos recheados de assertivas e
recados, não faltou uma lembrança emocionada a seus companheiros de luta
contra a ditadura, que tombaram pelo caminho.
Mais tarde,
receberia pessoalmente suas ex-colegas de prisão. Não esqueceu das
"adversidades mais extremas infligidas a quem teve a ousadia de
enfrentar o arbítrio". Não se arrependeu da luta, justificando-se nas
palavras de Guimarães Rosa: a vida sempre nos cobra coragem.
Mas, mulher, adverte Dilma, não é só coragem, é também carinho.
É essa mulher, misto de coragem e carinho, que seu exemplo espera libertar do jugo de uma perene discriminação.
Discriminação
que torna desiguais as oportunidades do mercado de trabalho, que funda a
ideia de submissão, e que avoluma diariamente vítimas de violência
doméstica, encontradas nos registros de agressões corriqueiras e no
longo histórico de crimes ditos passionais, movidos na verdade por
demonstrações explícitas de poder, orgulho e vaidade masculinas.
Temos um longo caminho pela frente na construção da igualdade de gênero.
Nossos
tribunais de justiça são predominantemente masculinos, porque os cargos
de juiz foram explícita ou implicitamente interditados às mulheres
durante décadas. Houve quem justificasse o fato com as intempéries da
menstruação e quem estipulasse que professora era o limite máximo para a
vida profissional da mulher.
Nas guerras ou ditaduras, as
mulheres além dos suplícios dos derrotados, ainda sofrem com freqüência
violências sexuais, que simbolicamente representam a submissão que a
vitória militar quer afirmar.
Mulheres são maioria nas visitas
semanais de presos. Mas quando elas próprias são encarceradas, as filas
nas penitenciárias se esvaziam. Com muito sofrimento e demora, sua luta é
para garantir os direitos já conferidos a presos homens.
Sem
esquecer as incontáveis mulheres de triplas jornadas, discriminadas pela
condição quase servil de dona de casa, que se obrigam a cumular com
suas tarefas profissionais e maternas.
Que a posse de Dilma
ilumine esse horizonte ainda lúgubre de preconceito, no qual os
estereótipos da mulher burra, submissa e instável, predominam na
sociedade.
E que, enfim, possamos aprender, com as mulheres, a respeitar sua igualdade e suas diferenças.
Pois,
como ensina Boaventura de Sousa Santos, elas, mais do que ninguém podem
dizer: "Temos o direito a sermos iguais quando a diferença nos
inferioriza. Temos o direito a sermos diferentes quando a igualdade nos
descaracteriza".
Façamos, assim, de 2011, um ano mulher.
Marcelo Semer é Juiz de Direito em São Paulo. Foi presidente da Associação Juízes para a Democracia. Coordenador de "Direitos Humanos: essência do Direito do Trabalho" (LTr) e autor de "Crime Impossível" (Malheiros) e do romance "Certas Canções" (7 Letras). Responsável pelo Blog Sem Juízo.