Tenho dúvidas da relação entre as palavras de gênero neutro e a igualdade . Por Ricardo Araújo Pereira
Em “Não Perca o Seu Latim”, Paulo Rónai conta a história do imperador Sigismundo, que no Concílio de Constança se enganou no gênero de uma palavra e ordenou que, dali em diante, a palavra passasse a ter aquele novo gênero.
Um monge considerou a ideia absurda e contestou, celebremente: “Caesar non supra grammaticos”, que significa “o imperador não está acima dos gramáticos”, ou seja, não manda na gramática.
Em princípio, o monge tem razão: ninguém manda na gramática, nem mesmo um imperador. No entanto, o Liceu Franco-Brasileiro, do Rio de Janeiro, resolveu tentar, e dirigiu-se aos estudantes com a saudação “querides alunes”, por “respeito à diversidade e à inclusão”.
Eu sou daquelas pessoas que acreditam ser possível respeitar a diversidade e a inclusão em português. Ao que parece, é uma crença absurda e reacionária: a língua portuguesa só deixa de discriminar se as palavras acabarem em “e”. Com exceção da palavra presidente, que já acaba em “e”, mas só deixa de oprimir se passar a ser presidenta. Que azar.
A transformação do nosso idioma numa língua neutra coloca vários problemas, e o menor deles talvez seja o ridículo. Mesmo forçando à neutralidade adjetivos e substantivos, como “querides” e “alunes”, ainda assim sobra a questão dos artigos, dos particípios passados, dos numerais, etc.
A frase, aliás bem bonita, “Es arquitetes foram agredides por bandides e tiveram de ser operades por médiques”, talvez cumpra parte destas novas aspirações linguísticas, mas na eventualidade de “es bandides” serem um par, e de querermos designá-los através da antiga e profundamente discriminatória formulação “dois bandidos”, teríamos de inventar também um numeral neutro, para acrescentar ao masculino “dois” e ao feminino “duas”. Deis, talvez? Eram deis bandides. Satisfeites?
A verdade é que tenho muitas dúvidas de que haja uma relação direta entre o gênero neutro das palavras e a igualdade. Parece-me que as desigualdades têm causas mais profundas. Por exemplo, na língua persa, falada no Irã, Afeganistão e Tajiquistão, todas as palavras são de gênero neutro. Se calhar, conheço mal as sociedades iraniana, afegã e tadjique, mas assim de longe não me parecem muito igualitárias, diversas e inclusivas.
Ricardo Araújo Pereira é Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.
Artigo publicado originalmente em https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ricardo-araujo-pereira/2020/11/tenho-duvidas-da-relacao-entre-as-palavras-de-genero-neutro-e-a-igualdade.shtml