Todo deboche contido na celebração de Anora. Por Milly Lacombe
Fernanda Torres não levou o Oscar. Demi Moore não levou o Oscar. Quem levou o Oscar foi a novinha que interpretou a prostituta em busca de seu príncipe. E quem riu por último foi Hollywood.
Demi Moore protagonizou um filme que critica a ditadura da juventude no cinema. Usa o “horror corporal” para falar das loucuras que mulheres são encorajadas a fazer em nome da ilusão da eterna juventude que vai nos manter no centro do palco. Ou não…
Fernanda Torres protagonizou um filme que fala de maternidade e dos sacrifícios pessoais que uma mãe deve fazer em nome do bem estar da família.
O cinema estadunidense não está apto a enxergar camadas para além da violência sexual e da prostituição na condição de uma mulher. A premiada foi justamente a novinha que interpreta uma trabalhadora sexual em busca de seu macho salvador. O recado é: o príncipe não é quem parece ser. Mas o príncipe existe. O príncipe é, como nos contos de fada, o brutamontes. Basta você se esforçar para encontrá-lo. E, ao encontrar, submeta-se ao que for para poder enxergar o herói por debaixo da fantasia de monstro.
“Anora”, o vencedor da noite, não fala das condições dilacerantes do trabalho sexual. “Anora” romantiza o precário. O mesmo recado dado há séculos: mulheres, encontrem seus príncipes. É um recado violento e absolutamente amado por Hollywood. Mas na premiação desse ano ele foi ainda mais eloquente dada a força das interpretações das sexagenárias Demi Moore e Fernanda Torres. Mulheres: coloquem-se nos seus lugares. Não me venham com filmes sobre mães extraordinárias ou sobre a dureza de envelhecer nesse meio. Queremos as prostitutas jovens e monodimensionais. Elas serão premiadas.
No palco, homens, homens e mais homens. Homens mascando chicletes que acham razoável cuspir a goma na mão de suas mulheres. No palco, Brody – o cuspidor – fala em antissemitismo – uma preocupação pertinente – mas não em anti-islamismo. Manda desligarem a música porque quer falar mais. E sai falando como se estivéssemos interessadas. É o dono da festa.
Daryl Hanna fala da Ucrânia, mas ignora Gaza.
Enfim um palestino e um israelense dizem coisas pertinentes a respeito do mundo. Deveriam ter sido aplaudidos de pé. Não foram.
A festa segue. Homens. Muitos homens brancos revezam-se no palco e elogiam uns aos outros. Sem jamais esquecer de suas mães e mulheres. É onde existimos: nos trabalhos de cuidado dos seres humanos que realmente importam e que fazem coisas maravilhosas.
O apresentador diz que não vai fazer piada sobre Tarantino, que está prestes a entrar no palco, porque respeita demais o cineasta. Que mulher mereceria essa reverência? Não nasceu ainda.
O Oscar é uma festa colonial. Está tudo ali, bem desenhado. Ganhamos como melhor filme estrangeiro e isso importa para nosso cinema tão maltratado. Só não podemos deixar de oferecer o contexto. O Oscar é uma festa estranha de homens esquisitos. E o recado desse ano precisa ser ouvido: mulheres: voltem para seus papéis aceitáveis. Não voltaremos, claro. Mas só poderemos nos revoltar se formos capazes de compreender o que foi dito.