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Aldeia Nagô
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Trump: a astúcia do tigre de papel? Por Boaventura de Sousa Santos

10 - 14 minutos de leituraModo Leitura

Artigo publicado originalmente no Brasil 247

Nunca se escreveu tanto em tão pouco tempo sobre a tomada de posse de um presidente de um país e a sua primeira semana no cargo

Nunca se escreveu tanto em tão pouco tempo sobre a tomada de posse de um presidente de um país e a sua primeira semana no cargo. Este frenesi tinha sido anunciado há muito tempo. A performance midiática da tomada de posse do Presidente Donald Trump só tem paralelo na que marcou a inauguração dos Jogos Olímpicos em Paris em 26 de Julho de 2024. De um lado, a dramática celebração da imposição unilateral de regras à humanidade, do outro, a dramática celebração de regras consensualmente aceites por toda a humanidade. Esta contraposição resume o tempo de transição em que o mundo se encontra. O que significa Trump nessa transição? A metáfora do “tigre de papel” para caracterizar os EUA é de Mao Tse Tung. É uma metáfora complexa, pois tanto designa fraqueza como força (a força para disfarçar a sua fraqueza). Qual a força e qual a fraqueza dos EUA sob a batuta de Trump?

Como nos ensinou Immanuel Wallerstein, a economia-mundo e o sistema inter-estatal modernos dos últimos cinco séculos dão múltiplos sinais de esgotamento. Não é necessário concordar totalmente com os detalhes da sua análise para lhe dar o crédito de ter chamado a atenção para que algo profundamente perturbador está a afectar fatalmente o funcionamento deste conjunto sistémico (económico, social, político, cultural, epistémico) a que chamamos modernidade eurocêntrica. O que virá a seguir ninguém pode prever. Este conjunto caracterizou-se pela contínua expansão do capitalismo e do colonialismo impulsionados pelas seguintes crenças fundamentais: crescimento econômico infinito, progresso unilinear, ciência e tecnologia como racionalidades privilegiadas, superioridade civilizacional-racial-sexual de quem tem poder para impor unilateralmente a sua vontade (o que designei por linha abissal: a necessária coexistência da humanidade com a sub-humanidade), troca desigual entre os países centrais e os países periféricos, democracia política e fascismo social como garantes da ordem injusta com menor violência, fortalecimento crescente do Estado como garante da coesão nacional. A tensão entre uma economia crescentemente globalizada e um sistema de Estados assente em ideias tão inclusivas quanto excludentes (soberania e cidadania) foi permanente. A paz e a guerra passaram a ser irmãs gêmeas. 

As rivalidades imperiais foram-se sucedendo até que a partir de 1870 se começou a construir o domínio imperial dos EUA, um domínio que viria a culminar em 1945 depois da mais recente e longa “guerra dos trinta anos” (1914-1918, 1939-1945). Os EUA foram o único país central cujas infraestruturas saíram ilesas (e mesmo fortalecidas) da guerra. Entre 1945 e 1970 os EUA foram não só o país dominante como o país hegemônico. É certo que havia o bloco soviético, o que apontava para uma bipolaridade. Mas havia uma contenção recíproca entre o bloco socialista e o bloco capitalista no plano político (bem ilustrado na crise dos mísseis em Cuba em 1962), enquanto no plano da economia-mundo os EUA dominavam sem rivais. Quando em 1955-1961 os países do Terceiro Mundo (recentemente independentes do colonialismo histórico ou ainda colónias) procuraram transformar a bipolaridade em tripolaridade foram prontamente neutralizados. 

Nesse período, ser dominante tinha dois componentes: unilateralismo e hegemonia. O unilateralismo significa a capacidade de ditar as regras de jogo nas relações internacionais que mais convêm ao país dominante. A hegemonia significa a capacidade de o poder fazer sem ter de recorrer à força, por mera pressão política. O recurso à guerra (fosse ela fria ou quente, regular ou híbrida) estava sempre disponível e o superior poderio militar era um dissuasor poderoso. Aliás, a metáfora da guerra global esteve sempre na agenda, mas como forma de reafirmar a hegemonia, e evoluiu ao longo do tempo: guerra contra o comunismo, guerra contra as drogas ilícitas, guerra contra o terrorismo, guerra contra a corrupção. 

A partir de 1970 tudo começou a mudar e a hegemonia dos EUA começou a deixar de sustentar o seu unilateralismo. Emergiu a rivalidade económica da Europa Ocidental (com a aproximação à União Soviética) e do Japão, ainda que permanecendo como aliados políticos dos EUA, a primeira crise do petróleo em 1973, a derrota no Vietnam no mesmo ano, a humilhação ante o Irão de Khomeini em 1980. É certo que o Japão estagnou a partir da década de 1990, mas, entretanto, o “perigo amarelo” renovou-se de uma maneira sem precedentes com a ascensão da China. Desde então, o unilateralismo dos EUA deixou de estar sustentado pela hegemonia e, sem ela, o recurso à força militar tornou-se o primeiro recurso político. O envolvimento militar no Médio Oriente e na Ucrânia são exemplos disso. O apoio militar à Ucrânia nunca se destinou a tornar possível a vitória da Ucrânia, mas antes a enfraquecer a Europa (para ser aliado político tinha de deixar de ser rival económico) e a Rússia, enquanto o mais importante aliado da China. A alta tecnologia de comunicação e informação e a indústria do entretenimento foram os dois últimos recursos para recuperar a hegemonia, mas o perigo amarelo já se tinha igualmente apropriado deles. Sem exclusividade não há hegemonia e o unilateralismo sem hegemonia só tem ao seu dispor um recurso: a guerra. Mas, neste caso, a guerra terá pela primeira vez o território norte-americano como teatro de guerra. 

 Tigre de Papel?

Em face disso qual o papel de Trump? O seu discurso inaugural pretende transmitir a mensagem de que o unilateralismo já não assenta na hegemonia e antes no excepcionalismo. Estão nele presentes todos os componentes do mito norte-americano: destino manifesto, espírito de fronteira (farwest, wilderness), conquista territorial, terra nullius (terra de ninguém, isto é, “nossa”). A este mito acrescenta um elemento novo: a dominação foi um custo, o desenvolvimento dos últimos cem anos foram o “fardo do homem branco” norte-americano e, por isso, o mundo deve reparações aos EUA. É a afirmação dramática de um unilateralismo defensivo, a confirmação do declínio disfarçado de regresso à Golden Age. Quem se opuser, prepare-se para o apocalipse. O discurso é um tratado de política simbólica, mas a hubris política foi de tal forma hiperbólica que teve de se traduzir numa avalanche imediata de medidas executivas. O frenesi das palavras exigia o shock and awe (choque e espanto, nome da invasão militar do Iraque em 2003) no plano executivo. Se há tigre de papel, a força do disfarce da fraqueza dominou no primeiro momento. O que vai significar no plano interno e no plano internacional?

O plano interno

No plano interno, o princípio da terra nullius institucional está a ser aplicado radicalmente. O Estado norte-americano é agora uma potencial Gaza institucional. Limpeza institucional como espelho de limpeza étnica. Mas a semelhança termina aqui dado que a institucionalidade norte-americana é menos débil em relação a Trump que os palestinianos em relação a Israel. Vai-se entrar num período longo, destrutivo e desestabilizador de medir forças antes que se chegue a um possível cessar fogo. O Estado como factor de coesão social, típico do sistema mundial moderno, passa a ser o principal fator de fractura nacional. O perigo desta luta institucional reside em que ela estará sempre à beira do caos, à beira da luta extra-institucional. 

A estratégia da fractura é complexa porque é feita em nome da verdadeira coesão, a coesão étnico-racial. Daí, a fúria anti-imigrantes. Ou seja, o princípio fundador da coesão nacional, a cidadania, é substituído pelo princípio da comunidade. O movimento moderno da Gemeinschaft para a Gesellschaft é invertido. Mas o fim da cidadania e a sua substituição pelo neo-tribalismo comunitário estavam há muito inscritos nos planos do fim do secularismo e da emergência do essencialismo identitário. Das ruínas da cidadania emergirão a pertença religiosa e o identitarismo excludente. 

Portanto, a terra nullius trumpista não implica uma ruptura total com o passado recente. O trumpismo começou antes de Trump e vai continuar depois dele. As sementes do que estava para vir, tanto no que respeita ao fim do secularismo como no que respeita à emergência do essencialismo identitário, floresciam há muito nos média, nas redes sociais, nas escolas e nas universidades. Se quisermos, é possível recuar muito mais atrás. Tem-se dito com verdade que com a Administração Trump o capital, que sempre dominou a política norte-americana, deixou de ter confiança nos políticos e decidiu assumir directamente o poder. Treze bilionários na equipa governamental. Mas afinal o Congresso não é há muito dominado pelo capital? Não pertence ao 1% grande parte dos senadores e dos representantes? Por outro lado, o liberalismo reformista que se traduziu nas políticas sociais, na criação das classes médias, na melhoria geral do nível de vida (Estado de bem-estar) tinha terminado há muito e o partido democrático tinha sido o instrumento dessa destruição, sobretudo a partir da década de 1990. 

Mesmo não constituindo uma ruptura, a acentuação dramática de certas tendências promovidas por Trump será desestabilizadora; e não podemos esquecer as sondagens recentes que pareciam indicar ser a guerra civil uma possibilidade real para uma percentagem significativa dos norte-americanos. Em alternativa, pode-se pensar que, afinal, os partidários da guerra civil acabam de ganhar eleitoralmente. Agora exigirão do Presidente que a contra-revolução se transforme em senso comum, como ele próprio afirmou no discurso inaugural. Se o poderá fazer ou não é uma questão em aberto. Não é de excluir que o transformem em breve num bode expiatório. O declínio dos EUA é estrutural e não pode ser travado pela retórica triunfalista da demagogia.

No plano internacional

O dramatismo das deportações visou dar um sinal de convulsão total no sistema inter-Estados. No entanto, não se pode subestimar as políticas reais que serão aplicadas sem dramatismo. Note-se, em primeiro lugar, que as políticas de protecionismo, nacionalismo, imposição de tarifas, promoção da (re)industrialização agora defendidas por Trump são as mesmas políticas que os países periféricos e semiperiféricos do mundo procuraram seguir na década de 1970 e 1980 e foram severamente punidos pelas instituições multilaterais dominadas pelos EUA, tais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. Tais punições foram causadoras de muito sofrimento social, de aumento da pobreza e da fome, de desindustrialização, de violência urbana, da emergência do crime organizado e das ditaduras. Não seria agora altura de propor reparações, por exemplo, a extinção da dívida externa desses países, alguns deles ainda asfixiados por ela? E será que daqui em diante todos os outros países podem seguir o mesmo tipo de políticas propostas por Trump para os EUA? Ou estaremos perante mais uma manifestação de unilateralismo assente no excepcionalismo norte-americano? Já é visível que a liberdade económica e de expressão que os magnatas de Trump propagandeiam em todas as caixas de ressonância da extrema-direita do mundo é a liberdade para as suas ideias e a repressão e a censura para as ideias daqueles que se lhes opõem.

O unilateralismo defensivo-agressivo de Trump visa provocar no plano internacional a mesma destruição institucional que está a provocar no plano interno. São alvo não apenas as instituições ligadas à ONU como todas as alianças entre países de base regional ou não. A preferência por relações bilaterais e o facto de as tarifas de importação serem determinadas, não pelo tipo de produto, como até aqui, mas pelo tipo de relações do país produtor com os EUA visa destruir a prazo qualquer aliança inter-estatal que rivalize com os EUA, seja ela a União Europeia ou os BRICS.

Também na política internacional as rupturas disfarçam muitas vezes continuidades. Afinal, sendo o critério das tarifas o que indiquei acima, qual é a diferença real entre tarifas e sanções econômicas? A destruição da União Europeia não começou já com o Brexit e depois com a guerra da Ucrânia? Neste domínio das rupturas/continuidades talvez o mais cruel exemplo é o que pode vir a acontecer ao povo mártir da Palestina. A limpeza étnica que começou em 1948 com a criação do Estado de Israel está a ponto de se transformar em política oficial dos EUA para a Palestina. Limpeza étnica de Gaza à qual se seguirá a da Cisjordânia. Sem o dramatismo das deportações dos imigrantes, a brutal limpeza étnica é anunciada como benévola ação humanitária como pareceu afirmar Donald Trump, referindo-se a desolação dos escombros produzidos pelos incessantes bombardeios  israelita. 

E agora?

Quando a fraqueza se disfarça de força pode conduzir a resultados ainda mais catastróficos. O tigre de papel tem força para destruir, mas não para construir.  Não há lugar hoje para unilateralismos e muito menos para o dos EUA. Os desafios globais que a humanidade enfrenta exigem multilateralidade, civilidade e respeito mútuo. As duas grandes vítimas do tigre de papel são a democracia e a ecologia. Os milionários à volta de Trump sabem que as políticas que pretendem impor não podem ser impostas democraticamente. Por agora, decidiram ocupar a democracia e transformá-la num fascismo de rosto humano. Como fascismo de rosto humano é um oximoro, se forem forçados a optar, sabemos de antemão qual será a sua opção. Se tivermos em conta que o iminente colapso ecológico só pode ser evitado por uma nova hegemonia global: uma grande convergência de esforços construída democraticamente entre seres humanos para poder ser executada democraticamente entre seres humanos e não humanos, é fácil de ver que o unilateralismo desprovido de hegemonia de Trump é o atalho seguido pelas elites do capitalismo global para legitimar o fascismo 3.0¹. A novidade deste fascismo é ser global e impor a todos os humanos o que os humanos desde o século XVI impuseram à natureza. Perante isto, é difícil imaginar que alguém pense não ser necessário nem urgente lutar, resistir e ousar vencer. 

¹Refiro-me a fascismo 3.0 porque caracterizei como fascismo 2.0 o tipo de governação que Donald Trump proclamava em Novembro de 2020 nas vésperas de perder as eleições. O fascismo 2.0 assentava nas seguintes premissas: não reconhecer resultados eleitorais desfavoráveis; transformar maiorias em minorias; critérios duplos; nunca falar ou governar para o país e sempre e apenas para a base social; a realidade não existe;  o ressentimento é o recurso político mais precioso; a política tradicional pode ser a melhor aliada sem saber; polarizar, polarizar sempre. O fascismo 3.0 amplia à escala global as premissas do fascismo 2.0. https://www.brasildefato.com.br/2020/11/14/artigo-fascismo-2-0-como-usar-a-democracia-para-destruir

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor.

Boaventura de Sousa Santos

Sociólogo português

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