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Elis, Tom, e as águas de março – em quatro atos. Por Renato Queiróz

10 - 13 minutos de leituraModo Leitura

Pode até soar lugar comum começar o discurso sobre o fim do verão com Águas de Março de Tom Jobim. Justamente nesta semana que marca o nascimento de Elis Regina, a intérprete que deu carne, alma e mistério às palavras de Tom Jobim, nos encontramos revisitando não só Águas de Março, mas o peso e a leveza de toda sua poesia.

Águas de março se funde ao tempo das chuvas, respingando na memória coletiva como a última gota d’água que arremata o ciclo quente e fulgurante, o verão. É irresistível, uma tentação poética, quase como o chamado da natureza que não se consegue ignorar. Mas hoje, em pleno equinócio das emoções, vou me arriscar nesse fio de argumento, em quatro atos, pelo menos, o que poderia ser uma crônica pode virar ensaio, porque há conexões que só podem ser tecidas assim, entre o gênio da música e a fluidez da vida. Se quiser dar uma parada, dê! Afinal, são quatro atos. As paradas são essenciais em toda viagem, pois permitem refletir, apreciar o percurso e renovar as forças para seguir adiante.

Senta que lá vem História!

Ato I – Elis, Seus Tempos e Estações

No hemisfério Sul, o outono é sempre um traço de passagem, o ar trançado entre o calor teimoso do verão e o frio que se avizinha. Em 2025, ele chega nesta quinta-feira, 20 de março, às 6h02min, no silêncio da manhã, como quem se anuncia com lentidão. Vai estender seus dias mansos até 20 de junho, cedendo, ao fim, o espaço para o inverno. É o tempo das folhas que se soltam, das cores que mudam devagar, enquanto o mundo parece respirar fundo, preparando-se para outra transformação. Não é apenas uma estação, mas um intervalo onde o chão e o céu dialogam, entre ventos e crepúsculos que parecem guardar segredos.

Elis nasceu em 17 de março de 1945 em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Como quem já vem ao mundo sendo fulgor, dissolvendo sombras. Porto Alegre a viu desabrochar, menina-flor rara, que desde cedo fazia do canto não só som, mas correnteza. Era riacho vivo, fluindo entre pedras, areias e ciscos no olhar. Não cantava versos, revelava universos escondidos nas entrelinhas.

Ainda de pés descalços, aos onze anos, a voz de Elis encontrou as ondas do rádio. E aos dezesseis, segurava seu primeiro disco, um broto fresco. Mas a fama verdadeira, feito vento forte de outros ares, veio em 1964, ao atravessar o Rio Grande.

No turbilhão dos anos, Elis tornou-se voo. Em 1965, no palco do primeiro Festival de Música Popular Brasileira, arrebatou corações com a música vencedora: Arrastão, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes. Inaugurando uma nova era na MPB. O país inteiro aplaudiu. Era estrela coroada pela TV Excelsior, pela plateia, e anteriormente pelo Prêmio Roquete Pinto como Melhor Cantora de 1964. Mas Elis era mais que aplausos; era presença. Em parceria com Jair Rodrigues, dava alma ao programa semanal O Fino da Bossa, exibido pela TV Record, entre 1965 e 1967, um espetáculo para os olhos e ouvidos que consagrou o melhor da música brasileira. O programa não se resumia à bossa nova, ele abria espaço para diversos gêneros musicais, celebrando a riqueza e a diversidade da cultura brasileira.

Elis cantava como quem respira. Elis Regina não era só a voz, era o fio da vida que tecia som e sentido. Dizem que foi a primeira, no Brasil, a fazer da própria voz um instrumento registrado na Ordem dos Músicos. Mas voz como essa não era mero instrumento: era bicho vivo, feito rio, correndo e transformando paisagens. Passeava pelos gêneros como quem explora um Brasil feito de morros e mares: bossa nova, samba, jazz, rock — sempre a MPB no peito. Ali, em “Madalena”, “Águas de Março”, “Como Nossos Pais”, “O Bêbado e a Equilibrista”, “Querelas do Brasil”, plantou o mapa de um povo inteiro, dos risos às saudades.

Seu faro era de quem adivinha caminhos. Emprestou alma aos versos de compositores como Milton Nascimento, Ivan Lins, Belchior, Fagner, Tavito, Zé Rodrix, Aldir Blanc e João Bosco. Foi madrinha, raiz que sustentava o futuro. No palco, a festa. Cantou de mãos dadas com Jair Rodrigues, Tom Jobim, Gal Costa, Gilberto Gil, outros astros e Rita Lee. Com César Camargo Mariano, maestro e companheiro de vida, criou melodias que se entranharam no coração da música brasileira.

Cada disco de Elis era um pedaço de si e do tempo. Em Pleno Verão (1970), “Vou Deitar e Rolar (Quaquaraquaquá)”, uma composição de Baden Powell e Paulo César Pinheiro, cheia de força e personalidade. A esperança brotava em “Nada será como antes”, em Elis (1972), além da busca por “Atrás da Porta” (Chico Buarque e Francis Hime) uma das interpretações mais poderosas e emocionantes da carreira de Elis Regina, e por “Casa no Campo” (Zé Rodrix e Tavito). Já em Elis (1973), entregou a alma em “Oriente”, “Meio de Campo”, “Ladeira da Preguiça” de Gilberto Gil e “É Com Esse Que Eu Vou” de Pedro Caetano. Esse álbum reflete a versatilidade e a profundidade interpretativa de Elis, consolidando-a como uma das maiores vozes da música brasileira.

No inesquecível Elis & Tom (1974), eternizou a poesia fluida de “Águas de Março”. Falso Brilhante (1976) trouxe a memória e o despertar de “Como Nossos Pais” ou “Velha Roupa Colorida”, ambas de Belchior, marcando um momento de grande maturidade artística da cantora. No intenso Transversal do Tempo (1978), Elis entoou os cânticos do povo, como em “Romaria”, de Renato Teixeira, um grito de fé e redenção. Elis, Essa Mulher (1979) foi manifesto e emoção, em notas como “O Bêbado e a Equilibrista”, composta por João Bosco e Aldir Blanc, se tornou um hino de esperança durante o período da ditadura militar no Brasil. Trouxe interpretações intensas e reflexivas, reafirmando sua força como intérprete.

Saudade do Brasil (1980) é um marco na discografia de Elis Regina. Ele é um álbum duplo que reúne 20 músicas do espetáculo que Elis apresentou no Canecão naquele ano. A produção e direção musical ficaram a cargo de Guti Carvalho e César Camargo Mariano, que também foi responsável pelos arranjos. Elis espelho de um país. Elis Regina foi estação e travessia, primaveras e outonos, desenhando o Brasil em som e sentimento. Cada canto, um ato de paixão.

Ato II – Tom, O Maestro Soberano, e o Seu Tempo

No calor do verão carioca, em 25 de janeiro de 1927, nasceu Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, o Tom Jobim. Era como se o mar o tivesse enviado um menino que já trazia no sopro o presságio de melodias que iriam reinventar o Brasil. Cresceu com o destino de Maestro Soberano, assim o chamou Chico Buarque. Tom Jobim um nome que ecoa nos quatro cantos do mundo, pai de uma música feita de brisa e profundidade.

Foi do samba, do jazz, dos clássicos e das águas do cotidiano que Tom afeiçoou sua música. E, em seu amado sítio do Poço Fundo, localizado em São José do Vale do Rio Preto, na região serrana do Rio de Janeiro, a poesia brotou, como sempre, das coisas simples. O “carro na lama”, por exemplo, era o de João Gilberto, indo encontrar o seu amigo e o arranjador do seu disco de estreia, em 1958. Chega de Saudade. Ali, entre chuvas incessantes e o som de obras ao redor, compôs “Águas de Março”. Estava em um momento difícil, em que a fama da bossa nova parecia desvanecer. Tom, triste, reclamava do mundo que não o ouvia, mas sua alma, garimpeira de versos e emoções, encontrou poesia até nas pedras e paus do caminho.

Inspirado pelo poema “O Caçador de Esmeraldas”, uma epopeia sertanista do século XVII, de Olavo Bilac, e por pontos de macumbas, canjerês, candomblés e umbandas recolhidos por JB de Carvalho, criou algo único. Houve quem visse ali inspiração; outros gritaram plágio. Mas no Brasil ou lá fora, “Águas de Março” tornou-se um marco. Foi considerada uma das dez músicas mais tocadas no século XX. Tom Jobim tinha a fama, entre os músicos, de transformar “uma nota de dez em cem”. Essa brincadeira não era por acaso: ele tinha o dom de pegar inspirações simples, do cotidiano, e transformá-las em obras de arte universais. Cada canto, um ato de paixão.

ATO III – O Encontro de Ventos, Terra, Céu e Mar

A primeira gravação de “Águas de Março”, em 8 de maio de 1973, abriu o álbum Matita Perê, de Tom Jobim. Este álbum foi produzido por Eduardo Athayde e lançado pela gravadora Philips. O álbum Matita Perê foi gravado em janeiro de 1973 no estúdio da Columbia Records, em Nova York, nos Estados Unidos. A produção contou com a colaboração do maestro alemão Claus Ogerman, que foi responsável pelos arranjos e regência. Este álbum foi lançado pela gravadora Philips e é considerado uma obra-prima que reflete a conexão de Jobim com a música erudita e a natureza brasileira.

Porém, foi no dueto com Elis Regina, entre os dias 11 e 13 de dezembro de 1973, no MGM Studios em Los Angeles, que o clássico ganhou vida plena. Elis e Tom, dois rios que se encontram, dois gênios com águas distintas. Ela, intensa e brava, navegava no ímpeto do perfeccionismo; ele, calmo e sereno, tecia suas notas no compasso da paciência. O estúdio, lá em terras longínquas, foi cenário de atritos leves, mas não de brigas. César, ponte entre as margens, apaziguava e alinhava os caminhos criativos.

Aloysio de Oliveira foi a força silenciosa por trás de Elis & Tom. Com sua produção precisa e sensível, ele orquestrou o equilíbrio perfeito entre a intensidade de Elis e a serenidade de Tom, garantindo que as diferenças criativas se transformassem em harmonia. Sua experiência e visão elevaram o álbum a um marco eterno da música brasileira, capturando o encontro de duas lendas com maestria e sutileza.

Elis e Tom, como ventos que cruzam céus e mares, encontraram na diferença de suas essências uma força singular. O encontro de suas águas criativas transcendeu o tempo e moldou um dos capítulos mais belos da música brasileira. No álbum Elis & Tom, as forças da natureza pareceram convergir, harmonizando intensidade e serenidade, ímpeto, tolerância e paciência. O resultado não foi apenas um disco, mas uma obra eterna que traduz o Brasil em sua diversidade e emoção, provando que, no equilíbrio dos elementos, nasce a verdadeira beleza.

No encontro de Elis e Tom, os rios se fundiram no eterno. Elis & Tom nasceu em estúdio longe de casa, com Elis, brava na precisão, e Tom, sereno na criação, traçando suas águas num remanso tenso de respeito e beleza. César Camargo Mariano, piano elétrico e arranjos, continuava alinhando margens. Hélio Delmiro no violão, Luizão Maia no contrabaixo, Paulinho Braga na bateria e Oscar Castro-Neves no violão e arranjos de algumas músicas, todos urdiam a teia sonora. “Águas de Março” virou símbolo: ciclos, renovação, o fim virando início. Cada nota, gravada com alma, tornou-se memória líquida que corre em direção ao mar do tempo.

No fim, o respeito era o leme que guiava. Da tensão, brotou beleza; das diferenças, nasceu um álbum que virou eternidade. Música que não se esquece, gravada no profundo da memória do mundo. Assim foi. Assim ficou.

Críticos afirmaram que Elis atingiu sutilezas impressionantes nesse disco. “Águas de Março”, em especial, tornou-se símbolo maior do cancioneiro brasileiro, uma canção que atravessa gerações com a mesma vitalidade. Para Tom, foi uma metáfora viva de ciclos, da renovação que começa no fim de tudo. Quando traduzida para o inglês como “The Waters of March”, pelo próprio Jobim, a composição manteve sua essência, exceto por detalhes como a “festa da cumieira” e a “garrafa de cana”, que Tom dizia serem intraduzíveis. Ainda assim, a música ganhou o mundo com artistas como Al Jarreau e Sérgio Mendes. Cada canto, um ato de paixão.

ATO IV – Elis e Tom: Eternos

Como se a travessia também lhes coubesse em mistério e maré, Elis Regina e Tom Jobim despediram-se do curso terreno. Elis, estrela que se apagou cedo demais, partiu no dia 19 de janeiro de 1982, com apenas 36 anos, em sua morada em São Paulo. Já Tom, mestre das águas e das notas, fechou seu ciclo em 8 de dezembro de 1994, aos 67 anos, em Nova York, distante dos seus passarins, das suas matas e chuvas tropicais. Tom Jobim, ao saber da morte de Elis Regina em 1982, expressou profunda tristeza e declarou que o Brasil havia perdido “a sua maior cantora”. Ele destacou a genialidade e a intensidade de Elis como intérprete, reconhecendo sua contribuição incomparável para a música brasileira.
Elis e Tom, seus nomes não se dissolveram no esquecimento; ao contrário, são como os rios que desembocam no oceano – sem fim, sem margem. Vivem, pois suas vozes, melodias e harmonias seguem cruzando os tempos e habitando os corações que nelas encontram refúgio e essência. É assim que a vida se dá: uma sucessão de ausências e presenças que nunca cessam de ecoar.

E assim, “Águas de Março” resiste ao tempo. É mais que música; é travessia, daquelas que Guimarães Rosa entendeu tão bem. Não é a chegada nem a partida que importam; o real se dá no meio do caminho. E nesse caminho, Elis e Tom são os guias que nos levam pela correnteza da alma. A música termina, mas a poesia, ah, essa fica fluindo como riacho que sempre promete vida ao coração. Cada canto, um ato de paixão.

Eis a mais célebre gravação de “Águas de Março”. O álbum Elis & Tom, sucesso incontestável de vendas e crítica, segue aclamado, intacto em seu lugar de honra na música brasileira. Nesta versão, Cesar Camargo Mariano e Tom Jobim ao piano, Hélio Delmiro e Oscar Castro Neves nos violões, Luizão Maia no baixo elétrico e Paulinho Braga na bateria fizeram não apenas música, mas um encontro eterno de precisão e alma

SONZAÇO!

Renato Queiroz é professor, compositor, poeta e um apaixonado pela história da música,.

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