Aldeia Nagô
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Um episódio de grosseiras manipulações jornalísticas por Celso Lungaretti

7 - 9 minutos de leituraModo Leitura

Aqui neste Observatório da Imprensa um leitor, dizendo-se
funcionário público de Brasília, questionou o que lhe pareceu contraditório
no artigo Por que tanto
estardalhaço em torno de um sequestro que não ocorreu?
:
a minha afirmação
de que nada havia de errado na escolha de Delfim Netto como alvo de sequestro
em 1969 e a crítica que fiz à Folha de S. Paulo por
trombetear tal episódio.






Meu comentário de resposta ao leitor me permitiu abordar um outro ângulo
da questão: o imenso desconhecimento do que foi a ditadura brasileira e a
dificuldade para transmitir tais informações ao grande público, já que a
indústria cultural não colabora (muito pelo contrário!). Então, só um público
mais seletivo tem uma idéia aproximada da realidade do período. A maioria dos
cidadãos fica à mercê da propaganda enganosa da extrema direita.

Daí eu ter advertido desde o primeiro momento: ruim mesmo seria a
utilização panfletária da reportagem da Folha por parte dos sites e
correntes de e-mails fascistas. É o que Antonio Roberto Espinosa, em carta ao
ombudsman Carlos Eduardo Lins da Silva, afirma estar ocorrendo.

Quanto aos próprios leitores do matutino, boa parte deles é capaz de
perceber as manipulações grosseiras da repórter e chegar a uma conclusão
diametralmente oposta àquela que a Folha tentou plantar em sua cabeça.

Quando se fala que os resistentes assaltavam bancos e sequestravam
diplomatas, o cidadão comum forma um juízo a partir das circunstâncias
atuais. Ele não sabe que isto se passou sob um regime totalitário nem a
indústria cultural cumpre seu dever de inteirá-lo disto (pelo contrário,
deturpa a verdade histórica, vendendo gato por lebre, ou seja, ditadura como ditabranda…). Também
ignora o que seja um movimento de resistência à tirania, como o que
protagonizamos no Brasil e os que existiram em países submetidos ao
nazifascismo.

Alienação e infantilização

Já não existem tantas pessoas vivas que eram adultas nos anos de chumbo e,
menos ainda, que tivessem conhecimento do que acontecia, mas não era
noticiado por força da censura e das intimidações de todo tipo que a imprensa
sofria (desde a prisão de jornalistas até os atentados que os terroristas do
CCC cometiam, com a conivência do regime).

Além disto, há a tendência que os idosos têm de colorir as lembranças do
passado, apenas porque eram ativos e vigorosos então. Com avaliações
distorcidas pelo saudosismo, eles informam muito mal as novas gerações.

Finalmente, não devemos esquecer que o cidadão comum brasileiro tem muita
tolerância ao totalitarismo – tanto que consentiu em viver sob ditadura por
mais de um terço do século passado. Há brasileiros que verdadeiramente
apreciavam ser reduzidos à infantilização por um regime de força, assim como
é frequente encontrarmos velhos italianos elogiando os tempos em que viviam
debaixo das botas de Mussolini e "os trens chegavam sempre no
horário"…

Devido a todos esses fatores, a pregação demagógica, simplista e falaciosa
da extrema direita é mais facilmente aceita pelos leigos do que a verdade dos
historiadores e das pessoas familiarizadas com a jurisprudência internacional
e os valores civilizados.

Assim, o desserviço prestado pela Folha, magnificando um episódio
sem nenhuma relevância jornalística, foi colar na imagem de Dilma Rousseff
vários adjetivos que causam imenso mal se não forem compreendidos dentro do
contexto dos anos de chumbo.

Quem sabe o que realmente acontecia, tende a concluir que Delfim Netto
merecia mesmo ser sequestrado e trocado pelas vítimas de sua canetada infame
ao assinar o AI-5, autorizando e coonestando todas as atrocidades cometidas
pela repressão ditatorial. Mas para quem não tem o quadro real na cabeça
e fiar-se nas informações da Folha parecerá que Dilma era uma
contraventora. E foi exatamente esta a intenção do jornal, imputando-lhe
responsabilidade num projeto que, ao que tudo indica, estava sendo
desenvolvido apenas por Antonio Roberto Espinosa e só seria submetido ao
comando Nacional da VAR-Palmares mais tarde; e que, além disto tudo, não saiu
da prancheta.

Folha vende gato por lebre

Aliás, um erro crasso que não está sendo destacado nesta polêmica é o de
que a reportagem da Folha sutilmente induziu os leitores a acreditarem
que a escolha de Delfim Netto como alvo de sequestro se explicaria por ele
ser "símbolo do milagre econômico", o ministro da Fazenda "que
sustentava a popularidade dos generais com um crescimento econômico de 9,5%
em 1969". Ou seja, sugere-se que os guerrilheiros, malvados como eles
só, estariam ressentidos com o boom econômico e seu alegado artífice.

A Folha omitiu, entretanto, que nem se falava em milagre
brasileiro
no ano de 1969. O PIB avançara 9,8% em 1968, mas o
salário-mínimo tivera crescimento negativo de 24,78%! A política
econômica da ditadura beneficiou, primeiramente, o grande capital; só depois,
em 1970, é que as sobras chegaram até a classe média.

No período entre 1968 e 1973, mais da metade dos assalariados brasileiros
recebia um salário-mínimo ou menos. E, enquanto o PIB cresceu 146,33% nesses
seis anos, o salário-mínimo teve de se contentar com apenas 81,52%, pois o
modelo era acentuadamente concentrador de renda. O período também foi marcado
por um aumento dos acidentes de trabalho, conseqüência das horas extras e da
maior intensidade produtiva; e até por um agravamento das condições de saúde
da maioria da população brasileira, evidenciado, por exemplo, no
ressurgimento de epidemias como a meningite e no aumento das taxas de
mortalidade infantil.

O certo é que, em 1969, nem sequer a classe média estava eufórica com o
regime, pois não havia a percepção de uma melhora econômica significativa,
depois de tantos anos de vacas magras. E Delfim não sustentava a
(inexistente) popularidade dos generais. Tudo isso viria a partir de 1970.

Signatário do AI-5

 Já o aspecto que eu destaquei  o de que Delfim era um alvo para
sequestros por conta de sua condição de signatário do AI-5, isto ficou
totalmente fora da reportagem da Folha, assim como nunca é lembrado
nas discussões sobre a punição dos torturadores. Ao contrário do tribunal de
Nuremberg, os brasileiros parecem dar mais importância aos executantes das
atrocidades do que aos mandantes.

A Folha, inclusive, considera Delfim Netto digno de figurar no seu
elenco de colunistas, o que equivale a um juízo de valor do jornal sobre ele 
e também serve como parâmetro para o juízo de valor que nós outros formemos
sobre a Folha.

Enfim, a matéria "Grupo de Dilma planejava sequestrar Delfim"
não passou de uma "forçação de barra", justamente para reforçar os
preconceitos dos desinformados e influir na sucessão presidencial.

Ingenuidade celestial

Por último, Antonio Roberto Espinosa acaba de esclarecer, em entrevista
concedida ao blog do Zé Dirceu, o que a repórter Fernanda Odilla lhe disse,
para convencê-lo a falar três horas ao telefone e a dar informações
complementares em telefonemas e e-mails, além de autorizá-la por escrito a
acessar os arquivos do Superior Tribunal Militar a ele referentes.

Nos seus desmentidos indignados, Espinosa vinha repetindo o que já ficara
evidenciado para qualquer leitor minimamente perspicaz: ajudou a Folha
a reconstituir esse insignificante episódio histórico (um não-fato, como fui
o primeiro a constatar), sem perceber que poderia ser superdimensionado e
deturpado para servir como arma contra Dilma Rousseff.

 Talvez até em resposta a meus insistentes pedidos, ele finalmente
colocou a questão em pratos limpos:

 A desculpa usada pela repórter era que queria contar melhor a trajetória
da VAR-Palmares. Disse que pretendia também esclarecer a participação da
ministra Dilma na organização. Dispus-me a colaborar, pois acho que o público
tem direito a todas as informações, sobretudo sobre um virtual candidato a
presidente. Um dos assuntos tratados, evidentemente, foi a preparação do
seqüestro de Delfim Netto, que eu, como comandante militar da VAR, conhecia;
mas a atual ministra, não necessariamente, pois sua área de atuação era a
política, não a armada.

Cheguei até a pensar que Espinosa fora iludido, concedendo a entrevista
sem saber que Dilma teria papel destacado na reportagem decorrente. Mas,
agora está explicado: ele acreditou que o jornal da ditabranda estava
empenhado em resgatar com isenção e fidelidade a memória da luta armada,
depois de ter colaborado com a repressão durante a ditadura e vir, desde
então, invariavelmente apresentando de forma negativa e distorcida os
resistentes que pegaram em armas…

Artigo publicado originalmente no Observatório da Imprensa

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