Aldeia Nagô
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Um réquiem para FHC por Gilson Caroni Filho

6 - 8 minutos de leituraModo Leitura

O
texto do ex-presidente tucano, publicado em vários jornais no domingo,
revela um erro de cálculo político sem precedentes. Contrariando seus
aliados, que desejavam vê-lo distante da campanha do PSDB para
presidente em 2010, FHC trouxe para o próximo pleito a comparação entre
as políticas de seu governo e as do governo Lula: a única polarização
que a direita não queria. Imaginando-se um estrategista, virou um fardo
pesado para as possíveis candidaturas de José Serra e de Aécio Neves.


As
palavras são as armas. E foi acreditando em sua capacidade de
manejá-las com destreza que Fernando Henrique Cardoso tentou atacar o
presidente Lula em seu artigo publicado no jornal O Globo, do
último domingo. Em sua vaidade desmedida, imaginava-se escrevendo um
texto inaugural, um manifesto histórico capaz de desvendar a cena
política, retirando a oposição do estado letárgico em que se encontra.
O efeito foi exatamente o contrário.

O texto mal escrito, sem
sentido em muitos parágrafos, revela um erro de cálculo político sem
precedentes. Contrariando seus aliados, que desejavam vê-lo distante da
campanha do PSDB para presidente em 2010, FHC trouxe para o próximo
pleito a comparação entre a política econômica do governo e a da gestão
petista: a única polarização que a direita não queria. Imaginando-se um
estrategista, virou um fardo pesado para as possíveis candidaturas de
José Serra e de Aécio Neves. Triste para o prestigiado sociólogo,
deplorável para o experiente político.

Comparações são ociosas,
mesmo porque cada polemista tem o seu tempo na história. Mas não é de
hoje que o sonho do""príncipe dos sociólogos" é ser um Carlos Lacerda
redivivo. Vê a si próprio como um panfletário versátil e demolidor,
capaz de usar as palavras como metralhadoras giratórias nas mãos de um
guerrilheiro. O problema é que seu estilo é tosco e seus escritos
ininteligíveis. Não é capaz de açular os medos da classe média, mesmo
usando os velhos ingredientes que vão da ameaça de uma república
sindicalista a um quadro incontrolável de corrupção. Não aprendeu que,
sem o apoio das bases sociais que o acompanham, seu suposto prestígio
pessoal conta pouco.

Para criar condições de instabilidade
superestrutural não bastam editoriais, artigos e noticiários de
jornalistas de direita. É preciso que as classes dominantes se
encontrem excepcionalmente reunidas em torno de um só objetivo. Para
isso, do outro lado, tem que haver um governo fragilizado, com escassa
base de apoio, incapaz de promover crescimento econômico com
redistribuição de renda. Reeditar uma""Marcha da Família com Deus, pela
liberdade" não é o troféu fácil que o voluntarismo pedante imagina.

Quando escreve que
possível escolher ao acaso os exemplos de "pequenos assassinatos". Por
que fazer o Congresso engolir, sem tempo para respirar, uma mudança na
legislação do petróleo mal explicada, mal-ajambrada? Mudança que nem
sequer pode ser apresentada como uma bandeira "nacionalista", pois, se
o sistema atual, de concessões, fosse "entreguista", deveria ter sido
banido, e não foi. Apenas se juntou a ele o sistema de partilha,
sujeito a três ou quatro instâncias político-burocráticas para
dificultar a vida dos empresários e cevar os facilitadores de negócios
na máquina pública"
, seu objetivo é tão claro como raso.

É
uma volta ao passado como farsa. Aos tempos em que os nacionalistas
lutavam por uma solução independente para extração e refino do
petróleo, de importância estratégica para o desenvolvimento do país,
enquanto os entreguistas definiam-se abertamente pela exploração do
produto pelo capital estrangeiro. Claro que estamos tratando de
realidades distintas no tempo e no espaço, mas a motivação da direita é
idêntica. E é a ela que a inspiração de FHC se dirige, inebriado como
se cavalgasse uma fulgurante carreira política. O desespero e o
patético andam sempre de mãos juntas. Ainda mais se lembramos "quem
cevou os facilitadores de negócios na máquina pública" no período que
vai de 1994 a 2002.

Criticando o que chama de "autoritarismo popular", o candidato a polemista prossegue: "Devastados
os partidos, se Dilma ganhar as eleições sobrará um subperonismo (o
lulismo) contagiando os dóceis fragmentos partidários, uma burocracia
sindical aninhada no Estado e, como base do bloco de poder, a força dos
fundos de pensão. Estes são "estrelas novas". Surgiram no firmamento,
mudaram de trajetória e nossos vorazes, mas ingênuos capitalistas
recebem deles o abraço da morte. Com uma ajudinha do BNDES, então, tudo
fica perfeito: temos a aliança entre o Estado, os sindicatos, os fundos
de pensão e os felizardos de grandes empresas que a eles se associam."

A
recorrência aos riscos de uma república sindicalista mostra a linhagem
golpista do artigo de FHC, mas a falta de prudência, indispensável para
quem pensa estar escrevendo um novo Manifesto dos Coronéis, leva a
indagações. O autoritarismo de mercado, marca do seu mandato, é exemplo
de democracia? A era da ligeireza econômica, da irresponsabilidade
estatal ante a economia fortalecia as instituições do Estado
Democrático de Direito? Ou não seria exatamente o oposto? Um bloco de
poder composto pelo agronegócio, grandes corporações midiáticas e uma
burguesia desde sempre associada, que privilegiava a ampliação
crescente das margens de lucro, ignorando os custos sociais que isso
implicava. Qual a autoridade política do ex-presidente para interpelar
o atual?

O que foi seu governo senão uma tentativa desastrosa de
adaptar o aparelho de Estado às exigências criadas pelo neoliberalismo,
contendo, a todo custo, as reivindicações dos trabalhadores do campo e
da cidade? No final, com uma impopularidade recorde, a superestrutura
política entrou em crise e os aliados contemplaram a rota de
afastamento. É a isso que FHC nos convida a voltar?

Outra observação interessante pode ser extraída desse trecho: "Por
que tanto ruído e tanta ingerência governamental numa companhia (a
Vale) que, se não é totalmente privada, possui capital misto regido
pelo estatuto das empresas privadas?"
. Aqui, o lacerdista frustrado
ultrapassou qualquer limite da sensatez. Abriu o flanco, ao permitir a
inversão da pergunta que faz.

Como destacaram, em 1997, Cid
Benjamim e Ricardo Bueno, no "Dossiê da Vale do Rio Doce", "o Brasil
levou 54 anos para construir e amadurecer esse gigantesco complexo
produtivo. O governo FHC pretende vendê-lo, recebendo no leilão uma
quantia que corresponderá, mais ou menos a um mês de juros da dívida
interna". Em maio daquele ano, a Vale foi vendida pelo governo federal
por R$ 3,3 bilhões. Em 2007, seu valor de mercado estava em torno de
R$103 bilhões. Em nenhum outro período a máquina estatal foi usada para
transferir recursos públicos para o capital privado como nos dois
governos do tucanato. Foi a esse continuísmo que a população deu um
basta em outubro de 2002.

O que se pode depreender das linhas
escritas pelo tucano que queria ser corvo? FHC se especializou na arte
do embarque em canoas onde o lugar do náufrago está antecipadamente
destinado ao canoeiro de ocasião. Julgava estar redigindo um artigo que
funcionaria como divisor de águas. Mas afundou junto com ele. Escreveu
o seu próprio réquiem, levando junto velhos próceres do PSDB. Um
trabalho e tanto. Extremamente apropriado para leitura no dia 2 de
novembro.

Artigo publicado originalmente em http://www.cartamaior.com.b

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