Aldeia Nagô
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Um teatro ruim para a democracia

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Para além das paneladas e da ameaça teatral de renúncia ensaiada pelo chefe da força tarefa da Lava Jato, é preciso reconhecer que ao votar as dez medidas contra a corrupção a Câmara de Deputados tomou decisões importantes do ponto de vista do Estado Democrático de Direito.

Entre várias emendas ao projeto original, os deputados preservaram o habeas corpus, garantia de liberdade individual que se tentava transformar num adereço sem função real – a mais recente iniciativa nesse sentido ocorreu em dezembro de 1968, quando a ditadura militar baixou o AI-5, inaugurando a grande treva da ditadura.

Também mandaram para o lixo a ideia de se aceitar provas obtidas de modo ilícito – porta aberta para se tolerar, agora com respaldo legal, a tortura, escutas telefônicas sem autorização judicial e outros abusos típicos do aparato policial brasileiro. (A ressalva era que a ilegalidade precisaria ser cometida de “boa fé”, argumento espiritual demais para um mundo que inclui até choques elétricos de alta voltagem). A Câmara também suprimiu um surrealista teste de integridade para candidatos ao serviço público. Aprovou uma emenda que pune abuso de autoridade por parte de juízes e procuradores, e outra que protege o trabalho dos advogados.

Num país submetido a lógica de uma justiça do espetáculo que se prolonga há mais de uma década, é fácil acreditar na versão de que toda garantia individual é uma forma de cumplicidade com a corrupção e os corruptos. Nesses dias, a pressão da mídia grande sobre a Câmara foi imensa e muitos parlamentares, inclusive de siglas de esquerda, se encolheram. Mesmo reconhecendo a importância do debate, preferiram não dar seu voto às propostas de caráter garantista, fazendo um debate esclarecedor junto a seus próprios eleitores.

O debate consiste em compreender que os direitos individuais estão na origem da democracia, que nasce como uma forma de resistência a formas tirânicas do Estado – assunto em atualidade máxima na conjuntura de turbulências que vive o país, inaugurada pela “encenação” que derrubou Dilma Rousseff, para usar a expressão de Joaquim Barbosa.

O centro da discussão consiste em reconhecer que toda pessoa é inocente até que se prove o contrário e assim deve ser tratada. Por isso ninguém pode ser preso sem uma sentença transitada em julgado – salvo em circunstâncias muito, muito especiais. Somos parte de uma civilização construída pelo iluminismo, essa parte da história humana formada por mestres que nos ensinaram que a liberdade é um valor fundamental, irredutível, da condição de homens e mulheres.

“É preferível um culpado solto a um inocente preso”, lembrava Voltaire, com uma clareza única para distinguir uma democracia de uma ditadura.

É por isso que a Constituição vale ou deveria valer para todos, inclusive juízes – como o inesquecível Lalau das reformas superfaturadas do TST de São Paulo – e procuradores – como dupla condenada no MPF de Brasília por cumplicidade no mensalão do DEM-DF.

Não custa lembrar que o projeto vai agora para o Senado.

As pressões para derrubar as emendas aprovadas irão aumentar — e é nesse contexto que se deve entender a ameaça de renúncia de Deltan Dallagnol. “É chantagem,”  denunciou o deputado Paulo Pimenta (PT-RS).

Vamos combinar: mesmo sem dispor de um mandato parlamentar, Dallagnol conseguiu apresentar um projeto de lei com base numa ação popular, coletando assinaturas pelo país inteiro. Quando, na fase final dos trabalhos, o relator Onyx Lorenzoni sinalizou que pretendia acatar sugestões de colegas, modificando a proposta de Dallagnol, o chefe da força tarefa foi a seu gabinete para enquadrá-lo. Saiu de como se fosse vitorioso até que em plenário, uma maioria respeitável de parlamentares mostrou-se capaz de aprovar emendas que, boas, más, péssimas ou ótimas, são inteiramente legítimas.

Considerando a condição de membro do Ministério Público, a ameaça de Dellagnol equivale a uma tentativa de usar a popularidade da Lava Jato para intimidar a Câmara,  o que é inaceitável. Num país onde a separação entre poderes é cláusula pétrea da Constituição, um procurador tem todo direito — como qualquer cidadão — de buscar apoio popular para aprovar uma lei que considere adequada ao país. Não lhe cabe, porém, valer-se da posição que ocupa no Ministério Público para pressionar os parlamentares, contra uma decisão soberana, tomada por representantes eleitos do povo.

Vladimir Platonow/Repórter da Agência Brasil

Artigo publicado originalmente em http://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/268254/Um-teatro-ruim-para-a-democracia.htm

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