Uma Pinga para Idibal Pivetta Texto de José Ribamar Bessa Freire
–No hay pinga en esta casa? Necesito urgentemente una pinga!
Quem fez a pergunta, suplicando em bom portunhol, foi o advogado Idibal Pivetta, em 1975 ou 1976, numa casa no bairro de Miraflores, em Lima, antes de um jantar intercultural para o qual fora convidado depois de fatigante jornada de trabalho. Os peruanos ali presentes, sobretudo as peruanas, se entreolhavam, perplexos, diante do pedido inusitado. Os brasileiros que residiam no Peru exibiam, desconfiados, um riso amarelo. Instalou-se um silêncio incômodo. Pintou clima embaraçoso. Ninguém ousava responder.
Antes de esclarecer as razões do estranhamento e antes que ele insista no pedido de pinga, digo que Idibal Pivetta, um paulista de Jundiaí, tinha à época pouco mais de 40 anos. Ele era advogado de presos políticos no Brasil e estava de passagem pelo Peru, chamado por um grupo de exilados políticos brasileiros, entre os quais três amazonenses – Euclides Coelho de Souza, Felipe Lindoso e este locutor que vos fala.
Nossa vida de expatriado havia se complicado bastante depois do Tacnazo, em agosto de 1975, quando o gorila Morales Bermúdez derrubou Velazco Alvarado, um general reformista que tinha um discurso anti-imperialista e contava com a simpatia dos camponeses por haver feito uma reforma agrária radical, cujo lema era “campesino, el patrón ya no comerá más de tu pobreza”.
Com o general Morales Bermúdez, a pobreza camponesa voltou a ser servida na mesa do gamonal. O controle policial, então, aumentou. O visto de permanência de muitos exilados, em vez de vigorar um ano ou dois como era de praxe no Governo Velazco, passou a ser renovado a conta gotas, mensalmente, o que aumentou a insegurança com ameaça permanente de expulsão. Para onde?
Falsos amigos
Não havia mais condição de continuar vivendo lá. Por outro lado, o Consulado do Brasil em Lima nos negava a cidadania brasileira, se recusando sistematicamente a atender os nossos insistentes pedidos de passaporte, o que nos impedia de deixar o país. Não podíamos ficar. E nem podíamos sair para lugar algum. A situação era a de se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.
Foi aí que apelamos para Idibal Pivetta, advogado de dezenas de acusados de crimes políticos junto a Auditoria Militar do II Exército em São Paulo, inclusive do dramaturgo Augusto Boal, para quem havia obtido uma vitória judicial sem precedentes no Supremo Tribunal Federal, conquistando, em plena ditadura militar, um passaporte para ele. O fato criou jurisprudência. Nós precisávamos, também, de um passaporte. Para ontem. Fizemos fila atrás do Boal.
O advogado do Boal atendeu, solidário, ao nosso chamado. Com essa aura de competência e coragem, viajou de São Paulo ao Peru. Na bagagem, levava a experiência de militância e de combate à ditadura e um currículo invejável: ex-presidente do Grêmio Estudantil no Colégio Bandeirantes, ex-presidente do Centro Acadêmico 22 de Agosto da PUC onde cursou direito, ex-presidente, em 1958, da União Nacional dos Estudantes (UNE), além de meia dúzia de prisões no DOI-CODI e no Deops de São Paulo, onde foi espancado, uma delas em 1973 com duração de três meses.
A repressão que sofreu na própria carne era decorrente das atividades que desenvolvia tanto no fórum judicial como no teatro. Ambas incomodavam a ditadura. Ele havia criado o grupo Teatro Popular União e Olho Vivo, em 1966, responsável por mais de 4 mil espetáculos, apresentados em teatros, casas paroquiais, sacristias de igreja e em qualquer biboca onde houvesse espectador disposto a se divertir e a pensar. Cinco textos de sua autoria, com o nome artístico de César Vieira, foram vetados pela Censura.
Logo no primeiro dia de sua estadia, fez contatos com grupos teatrais de Lima, responsáveis pelo Festival del Puente de los Suspiros, em Barranco. Depois, ouviu a história de cada um de nós, redigiu procurações para que nos representasse na ação que iria impetrar, fez e aconteceu. No início da noite, já exausto, queria tomar merecida cachacinha na casa dos novos amigos.
Acontece que eram ‘falsos amigos’, não os donos da casa, mas a palavra pinga em português e em espanhol hispano-americano. Elas são aquilo que se denomina de “falsos cognatos”. Ou seja, nas duas línguas, a palavra tem a mesma forma, o mesmo som e até a grafia igual, mas os significados são muito diferentes. Trata-se de uma relação de amizade semântica falsa. Amigo em espanhol é amigo em português. São verdadeiros amigos. Mas com pinga, o buraco é mais embaixo.
Pinga ni mim
Idibal queria apenas tomar uma cachacinha, um pisco de Ica ou uma dose de qualquer água que passarinho não bebe, por isso insistiu na pergunta sem saber que estava pedindo, para os peruanos, outra coisa. Pinga lá é a denominação vulgar daquilo que corresponde, em português, ao membro viril que eufemisticamente, com todo respeito, chamamos de pinto, pomba, vara, rola, mandioca, manjuba, brachola, alguns usam até a palavra croquete, outros preferem a palavra que rima com Ypioca. Em espanhol, pinga não era “uma boa ideia”.
Já ouvi contarem essa confusão entre os dois tipos de pinga como se fosse uma piada, mas se aconteceu com outras pessoas, ocorreu também com Idibal Pivetta. Quero ver minha mãe mortinha no inferno, quero que Santa Luzia me cegue se estou inventando. Estão aí Elisa, Euclides, Adair, Malu, Felipe, Zezé Lindoso e o próprio Idibal, hoje com 83 anos, que não me deixam mentir.
Talvez Idibal nem lembre mais de mim, mas eu não consigo esquecê-lo. Nunca! Ele nos trouxe a esperança. Da turma do Peru, meu passaporte foi um dos primeiros concedidos por decisão do Supremo Tribunal. Por isso, minha mãe, uma senhora muito católica, ficou agradecida e rezou por Idibal Pivetta durante anos, colocando-o no seu pacote de orações. Quando ele morrer, na idade de Niemeyer, vai direto pro céu – garantiu minha mãe.
Hoje, 24 de março, é um bom dia para homenagear Idibal Pivetta. Comemoramos o Dia Internacional pelo Direito à Verdade em relação às Grandes Violações dos Direitos Humanos e para a Dignidade das Vítimas. Criado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, o dia lembra o assassinato a sangue frio do Monsenhor Oscar Arnulfo Romero, bispo de El Salvador, no ano de 1980 – esse sim enfrentou a ditadura – e também o Golpe Militar na Argentina, ocorrido em 1976, que vitimou mais de 30.000 pessoas, sem o protesto e até com a conivência e o silêncio de uns e outros, ou para ser mais preciso, em latim, aliqui et alii.
Lembrei deste advogado abnegado e solidário que nos defendeu sem receber honorários, ao ver seu nome na programação do Sábado Resistente, evento que rolou ontem para comemorar o Dia Internacional pelo Direito à Verdade, promovido pelo Memorial da Resistência de São Paulo e pelo Núcleo de Preservação da Memória Política.
Neste dia, portanto, ninguém melhor do que ele para ser homenageado com uma boa talagada. Longa vida ao companheirão que naquele momento representou a mãe gentil, trazendo-nos o sol da liberdade e os raios fúlgidos. Daqui, do Diário do Amazonas, em nome dos exilados políticos, fico de pé e proponho aos leitores que façamos um brinde a Idibal Pivetta com uma pinga, mas por favor, pinga brasileira, que pode ser até mineira ou cearense. Bom, pra quem gosta, peruana também, por que não?
P.S. Esta crônica já estava escrita, quando os índios da Aldeia Maracanã, no Rio, e seus aliados, foram brutalmente reprimidos pela polícia a mando do governador Sérgio Cabral. Minha solidariedade a quem, efetivamente, estava defendendo o patrimônio público que Cabral queria derrubar.
Por: José Ribamar Bessa Freire