Aldeia Nagô
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Uma velha história por Alessandra Terribili

5 - 7 minutos de leituraModo Leitura
Nos anos 80, a luta contra a violência contribuiu para fortalecer e
consolidar o feminismo no Brasil.





As mortes de Ângela Diniz (1979) e de Eliane
de Gramond (1981) por seus ex-maridos chocaram o Brasil. Eram mulheres que
puseram fim a seus casamentos, e, além da brutalidade dos assassinatos, os dois
casos envolviam pessoas conhecidas da opinião pública, o que lhes conferiu
ainda mais "notoriedade". "Quem ama não mata" era a resposta dada
pelas feministas àqueles que sugeriam que os homens matavam "por amor".

Mas não tardou a tentativa de transformar as vítimas em rés, "compreendendo"
o criminoso, que teria "perdido a cabeça" por ação delas. Organizadas, as
mulheres repudiaram o machismo que levou Ângela e Eliane à morte, e que,
depois, buscou incessantemente justificar essas mortes com base na conduta das
vítimas. A tal defesa da honra era reivindicada. O movimento de mulheres não se
calou e colocou em questão as insígnias do "em briga de marido e mulher,
ninguém mete a colher" ou a ideia de que "um tapinha não doi".

O tempo passou e, em 2000, a própria mídia foi pano de fundo para um crime
análogo. A jornalista Sandra Gomide foi morta pelo ex-namorado, Pimenta Neves,
então diretor de redação de O Estado de São Paulo. O assassinato aconteceu
precisamente porque o namoro acabou. Por conta disso, ela sofreu agressões
físicas e verbais, perdeu seu emprego, foi perseguida. Neves chegou a ameaçar
de retaliações qualquer pessoa que oferecesse trabalho a Sandra. Pela mídia, a
moça chegou a ser tratada como "aquela que namorou com o chefe para subir
na vida".

Em 2008, outro episódio de violência contra mulher gerou comoção nacional.
Eloá Pimentel, com seus 15 anos, praticamente foi assassinada ao vivo e em rede
nacional pelo ex-namorado, que a sequestrou e a manteve em cativeiro por cinco
dias. A agonia da menina foi acompanhada em tempo real, e ao se tornar a
personagem central de uma história dramática, ela, como as já citadas, teve sua
vida exposta e sua conduta julgada, apresentada como principal fundamento do
comportamento agressivo de seu assassino.

Há poucos meses, a vítima foi Maria Islaine, cabelereira, morta pelo
ex-marido diante de câmeras que ela mesma mandou instalar no salão onde
trabalhava, julgando que essa atitude a protegeria da violência anunciada. Dias
atrás, tivemos a infelicidade de testemunhar o advogado do assassino defendendo
seu cliente com o bom e velho "ela provocou".

Eliza e Mércia

Agora, a mídia tem apresentado as histórias de Eliza Samudio e de Mércia
Nakashima como se fossem romances policiais. Convida-nos a acompanhar cada
momento, provoca comoção, sugere respostas, vasculha a vida das mulheres mortas
e as expõe a julgamento público, sem direito de defesa. A tragédia é
exaustivamente explorada, e no final, a lição que fica é: elas procuraram.

Mércia morreu, aparentemente, porque rejeitou seu ex-namorado. Cometeu o
desaconselhável equívoco de querer sua vida para si mesma, de não aceitar
perseguições, sanções ou intimidações. Entretanto, tem-se falado em traição e ciúmes.
E lá vem, de novo, a conversa fiada da defesa da honra. Mas é Mércia quem não
está mais aqui para defender a sua.

De Eliza, disse-se de tudo: maria-chuteira, garota de programa, abusada,
oportunista. Acontece que não importa. Não importa se ela foi garota de
programa, se era advogada, modelo, atriz, estudante ou deputada. Ela está
morta. E morreu, aparentemente, porque o pai de seu filho não queria arcar com
as obrigações legais e éticas de tê-la engravidado.

Ela nunca vai poder se defender das acusações póstumas. Não vai ao
"Superpop" defender sua versão ou sua história. Não vai estampar a capa de
"Contigo", acompanhada de frases de impacto entre aspas. Ela está morta, e o
que ela fez ou deixou de fazer, pouco importa agora. E seria prudente,
inclusive, evitar julgá-la pelo crime que a matou.

Mais uma vez, a história se repete. Mulheres são mortas por homens com quem
se envolveram. Assassinos frios, esses homens tiraram a vida de mulheres
confiando na impunidade, porque há quem os "compreenda". A morte de Eliza e de
Mércia parece ter sido calculada e premeditada. E mesmo assim, segue ecoando a
ideia de que a culpa é delas, que elas procuraram, que elas provocaram.

O espetáculo da morte

Infelizmente, histórias como as de Eliza, Mércia, Eloá, Maria, Sandra,
Ângela e Eliane são muito mais comuns do que se imagina. E antes de culminar em
assassinato, outras formas de violência foram praticadas contra cada uma delas,
como acontece com muitas – as que morrem e as que se salvam.

A espetacularização promovida pela mídia, no entanto, faz parecer que são
histórias ímpares e distantes do cotidiano da vida real. Como se o perigo não
morasse ao lado, como se muitas não dormissem com o inimigo. Na sua família, na
sua vizinhança, no seu local de trabalho, no seu círculo de amigos, certamente
há casos de violência contra mulheres, e certamente você ouviu falar de pelo
menos um deles. Em recente levantamento, a ONG Centro pelo Direito à Moradia
contra Despejos apontou que uma mulher é agredida a cada 15 segundos no Brasil,
e uma em cada quatro afirma já ter sofrido violência. Há que se considerar
também que existem as que não afirmam – por medo ou vergonha.

Essas mulheres não são co-autoras de seu assassinato. É recorrente a trama
montada para torná-las rés, para justificar suas mortes nas ações delas mesmas,
para tolerar a violência. "Que sirvam de exemplo", parece que dizem.

Num mundo em que a desigualdade entre mulheres e homens se expressa
visivelmente desde na divisão das tarefas domésticas até no controle dos corpos
delas pela Igreja ou pelo Estado, passando pela realidade de violência e pela
discriminação no mercado de trabalho ou por serem tratadas como objetos
descartáveis na rua e na TV; ninguém pode dizer que não sabia; nem fazer
piadinhas que celebram os casos. São mulheres de carne e osso, não são
personagens de novela.

São cúmplices dessa violência todos os que a toleram ou que buscam
subterfúgios no comportamento da vítima para declará-la culpada por sua própria
morte. São cúmplices silenciosos, igualmente, aqueles que fingem que machismo,
discriminação e opressão são peças de ficção.

Alessandra Terribili, jornalista, integrante do coletivo nacional de mulheres do PT

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