Venezuela: Maduro busca votos enquanto EUA preparam golpe. Por Paulo Moreira Leite
Quando faltam 66 dias para a eleição presidencial na Venezuela, é bom estar preparado para as novas tentativas de massacre contra um governo que, com todas os erros e limitações que se possa apontar, cumpre o papel de proteger os interesses dos mais humildes e defender a riqueza do país, numa posição cada vez mais raras nesses tempos de reação em toda linha.
O ataque permanente é fácil de entender como os movimentos no tabuleiro de um jogo de War.
Enquanto governos com uma perspectiva política semelhante tem sido derrubados pela via eleitoral, como na Argentina dos Kirschner, ou mesmo através de golpes de Estados escancarados, como o Brasil de Dilma Rousseff e a Honduras de Manoel Zelaya, a Venezuela constitui, ao lado da Bolívia de Evo Morales, o principal polo de resistência a velha dominação imperialista — sim, é disso que estamos falando — na América do Sul.
A derrubada do chavismo a qualquer preço e por qualquer meio ao alcance da mão é um objetivo estratégico de Washington desde que a experiência recente deixou claro que não seria possível fazê-lo por meios pacíficos, nem mesmo depois que um câncer fulminante produziu a morte precoce do líder e fundador da República Bolivariana.
A perspectiva de uma reeleição de Nicolas Maduro, em eleições sem dúvida representativas, confirma a surpreendente virada da situação consumada em 2017, através de três eleições consecutivas no prazo de seis meses, que abriram a possibilidade de tirar o país de um impasse político prolongado e profundo. Combinada com uma bem vinda recuperação do preço do barril do petróleo no mercado internacional, pode-se até imaginar pela chegada de períodos menos ásperos pela frente.
Não vamos fingir ingenuidade, porém. Estamos diante de um processo permanente e metódico, organizado por uma máquina anti-democrática que não descansa. Numa das primeiras reações de alarme diante do enfraquecimento da oposição após as vitórias de Maduro em 2017, o economista Ricardo Hausmann, ex-ministro neo-liberal na década de 1990, publicou artigo no qual admitia o enfraquecimento “da oposição política” a Maduro e pedia “ajuda militar de píses sul-americanos, norte-americanos e europeus” para derrubar o chavismo. Talvez em função de uma certa embriaguez intelectual — o texto chegava a comparar a imaginária operação internacional contra o chavismo como a ação dos Aliados contra o Nazismo na Europa em 1944-1945, a ideia parecia um ponto fora da curva. Não obteve maior atenção. Engano.
A questão eleitoral é tão séria e tão importante, do ponto de vista dos interesses do império, que um mês depois a ideia de organizar um golpe para o governo Maduro foi assumida, em público e sem rodeios, pelo próprio secretário de Estado Rex Tillerson. Nada a ver com arroubos de um intelectual como Haussman, com posto em Harvard, carreira em organismos internacionais, conexões na America Latina — inclusive entre os tucanos brasileiros — mas sempre um derrotado de Caracas.
Com uma arrogância a moda Trump, que costuma ser confundida com franqueza, Tillerson dispensou pudores e convenções típicos da diplomacia para dizer abertamente que “na história da Venezuela e dos países sul americanos, às vezes os militares são o agente da mudança, quando as coisa estão ruins e a liderança não serve ao povo”.
Recebidas em silêncio cúmplice pelos chefes de governo dos países vizinhos, com os quais iria se encontrar no dia seguinte, a declaração de Tillerson não era simples literatura. Tinha como alvo outro processo em curso naqueles dias, envolvendo negociações em torno das eleições de abril entre governo-oposição em São Domingos, até então em clima de moderado otimismo, com participação inclusive de Julio Borges, antigo presidente da Assembléia Nacional, controlada pela oposição.
As tratativas se encontravam em sua fase final quando Tillerson se pronunciou. A oposição já havia assinado acordos e pré-acordos. Quando parecia que faltava apenas autografar os documentos finais, ocorreu uma cena clássica: Borges e seus seguidores voltaram atrás em pontos já firmados, improvisando exigências inaceitáveis para sair batendo a porta. Claro que comédia não convenceu ninguém. Só deixou a dúvida: saber se era um teatrinho ensaiado e combinado desde o início ou foi uma mudança de ultima hora para obedecer Tillerson.
Uma reação oportuna, mas pouco conhecida, por motivos óbvios, coube a José Luiz Rodriguez Zapatero, o dirigente do PSOE que foi presidente da Espanha entre 2004 e 2011, país que tem uma importância particular na Venezuela. Integrado a um processo que, com idas e voltas, prolongou-se por dois anos, Zapatero escreveu uma carta a todos os lideres dos partidos de oposição, solicitando que repensassem a decisão e retomassem as negociações. “É meu dever defender a verdade e meu compromisso é não considerar como perdida a obtenção de um compromisso histórico entre venezuelanos”. No momento em que a ruptura estava em curso, Zapatero deu uma entrevista a TV venezuelana na qual assumia de forma lúcida a teoria do menor dano– lembrando que mesmo um acordo que não fosse totalmente apoiado pelas partes seria preferível a uma ruptura, “extremamente negativa”.
Levando em conta as bençãos em sentido contrário que vêm de Washington, é pouco provável que apelos em nome da democracia façam efeito sobre a oposição venezuelana, o que permite prever em 2018 uma reprodução dos pleitos de 2017.
Foram eleições marcadas por vitórias claras do governo Maduro, mas ao manter-se ausente a oposição pode fazer uma campanha de denúncias e boicotes, deixando a porta aberta para intervenções golpistas. Pode-se prever que a partir de agora todo esforço será feito para agravar — por razões políticas — uma situação de sofrimento da população.
Mesmo com uma guerra econômica infame, produzida pela manipulação do cambio e a sabotagem no abastecimento, o governo consegue manter um apoio popular cuja base é a memória do povo, que compara o cotidiano que enfrenta hoje com a experiência passada de miséria.
Um dado resume tudo. Assunto permanente da vida cotidiana e da imprensa mundial, a desnutrição é um fato da vida real, que atingiu, conforme os dados da FAO, a marca de 4,1 milhões de pessoas, ou 13% da população. É muita gente — num quadro que pode se agravar se não for revertido, o que exige medidas duras de política econômica, em particular contra monopólios, nacionais e internacionais, que se valem de um cambio favorecido para lambuzar-se com o sofrimento da maioria.
O quadro atual, contudo, mostra um progresso notável em relação a história do país. Entre 1998-2000, período que reflete o país anterior à chegada de Hugo Chávez a Miraflores, a desnutrição chegava a 4,9 milhões de pessoas, ou 21% dos venezuelanos, sem que inspirasse um fiapo da indignação de ocasião que se encontra na mídia de hoje.
Essa experiência da vida real explica porque, quando você anda por Caracas, encontra pessoas que dizem “faltam mercadorias mas ninguém passa fome”.
A cobiça sobre a Venezuela costuma ser explicada pela riqueza de suas reservas do petróleo mas este fator — estratégico — não explica tudo.
Num período histórico no qual governos de perfil semelhante ou aproximado têm sido derrubados pela via eleitoral ou através de golpes, conforme o caminho mais fácil, a resistência do chavismo contém lições úteis para os demais, pois ajuda a entender sua sobrevivência mais longa.
Ali a democratização dos meios de comunicação provocou os gritos e lamúrias que são ouvidos em todos os lugares — mas avançou como em nenhum outro país do Continente, assegurando um ambiente plural, com espaço para governo e oposição.
Hugo Chávez transformou a periferia de Caracas e outras grandes cidades no primeiro ponto de desembarque de médicos cubanos que trouxeram da versão local do Mais Médicos, provocando uma mudança no atendimento básico que se tornou referência na Organização Mundial de Saúde.
A politização do povo não se fez através da publicidade, mas pelo método iluminista das experiências políticas. Num país onde ocorreram 18 eleições em 19 anos de chavismo, é tão fácil encontrar um venezuelano com um exemplar da Constituição no bolso da camisa como um celular no bolso de sua calça.
Uma das originalidades da história venezuelana é que o país acumulou experiências de confrontos anti-imperialistas muito antes que Vladimir Lenin tivesse escrito sua obra clássica sobre o assunto, “Imperalismo-Etapa Superior do Capitalismo”. Uma dos episódios notáveis ocorreu em 1902.
Num período histórico no qual os países centrais enfrentavam uma das grandes crises do capitalismo, seus banqueiros — e seus Exércitos — foram atrás de devedores mundo afora. Nesta situação, Brasil e Venezuela tiveram caminhos diferentes. A recém proclamada Republica brasileira raspou os cofres, cortou gastos, reduziu investimentos e produziu desemprego para atender os credores, com as consequências que todos conhecemos, que foi reconstrução de uma economia agrária e dependente herdada de Dom Pedro II.
Na Venezuela, o presidente Cipriano Castro decidiu resistir e não pagar. Mobilizou a população, com discursos de tom nacionalista que hoje seriam chamados de “populistas”. Manteve a postura ainda que, numa intervenção drástica, encouraçados da Marinha de Guerra Alemã e Inglesa tenham afundado barcos de guerra venezuelanos e bombardeado três localidades no litoral. A resistência compensou. Após três meses de conflitos duríssimos, a Venezuela conseguiu melhores condições para negociar seus pagamentos e ajudou a criar uma nova doutrina diplomática no Continente, que define que nenhuma potência pode empregar métodos violentos para cobrar dívidas de países mais fracos.
Uma boa lição para a história, vamos combinar.
Artigo publicado originalmente em https://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/342226/Venezuela-Maduro-busca-votos-enquanto-EUA-preparam-golpe.htm