Xangai nas Trilhas do Sertão. Por Renato Queiróz
Nas margens serenas do Córrego do Jundiá, em Itapebi, sul da Bahia, o dia 20 de março de 1948 amanheceu diferente. Naquela manhã, nascia Eugênio Avelino – um menino que, sem saber, carregava no sangue a poesia do sertão.
Senta que lá vem História!
O apelido que o tornaria conhecido veio mais tarde, não por acaso: na poeira das ruas da pequena Nanuque – cidade mineira – seu pai batizou a sorveteria da família com o nome exótico de “Xangai”, homenageando a distante cidade chinesa. O garoto que ajudava no balcão acabou herdando mais que o nome – herdou o dom de adoçar a vida dos outros, não com sorvetes, mas com música.
O pequeno Eugênio cresceu embalado pelo balanço das redes, rodeado pelo cheiro da terra seca que, em dias de chuva, se transformava em aroma de chão molhado. Pelo caminho, ecoavam as cantigas dos violeiros que cruzavam a região, deixando suas histórias e melodias como parte do cenário de sua infância.
Cada cantiga de roda, cada história contada à luz de lamparina, foi ficando guardada no menino que, mais tarde, transformaria essas memórias em canções.
O apelido “Xangai”, que começou como uma brincadeira de infância, acabou se tornando sua identidade artística – e que identidade! Aquele nome que veio de uma sorveteria no interior da Bahia acabou rodando o Brasil inteiro, levando nos versos o cheiro da terra, o sabor das frutas do pé e o calor humano do sertão.
Quando adulto, Xangai explicaria com simplicidade: “Minha música é como aquela sorveteria do meu pai – tem que ser doce, mas tem que ter sustança”.
E foi assim, misturando a doçura das melodias com a firmeza das raízes nordestinas, que ele conquistou o Brasil.
O menino que nasceu à beira do rio se tornou um dos mais autênticos trovadores do sertão, provando que os melhores sabores – sejam de sorvete ou de canção – vêm sempre das origens mais simples.
O apelido, inicialmente restrito ao ambiente familiar e à comunidade local, transformou-se em uma marca artística. Entre serras que se escondem no horizonte e rios que dobram o tempo em suas águas, Xangai cresceu imerso na simplicidade e na musicalidade do sertão. Sem saber ainda, ele se tornaria o trovador que daria forma às cores dessa paisagem na alma de quem o escutasse.
Criado em um ambiente rural, onde os sons do vento e dos pássaros se misturavam às prosas de violeiros, ele absorveu as histórias da terra e as transformou em versos e melodias, como quem borda a eternidade.
Xangai estreou na música brasileira em 1976, com o álbum Acontecivento, produzido pela gravadora CBS. Nesse trabalho, ele já demonstrava sua habilidade em transformar o cotidiano em arte. Faixas como “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, e “Forró de Surubim”, de Edmundo Souto e Paulinho Tapajós, representavam não apenas sua reverência às tradições nordestinas, mas também a sua capacidade de transcendê-las, criando um elo entre o regional e o universal.
O lançamento foi o início de uma jornada que só faria crescer, marcada por uma interpretação única e pelo compromisso de dar voz às raízes do sertão.
Em 1981, Xangai alcançou um dos momentos mais emblemáticos de sua carreira com o lançamento de Qué que tu tem canário, pela gravadora Kuarup.
Este álbum se consolidou como um marco na música brasileira e uma verdadeira celebração da vida sertaneja.
A faixa-título, composta por Xangai e Capinan, é uma exaltação à vivacidade, as maestrias e vivências do sertão, que o canarinho-da-terra conhece na nata filosofia. Com versos cheios de regionalismos e reflexões com a oralidade popular, Xangai entrega uma interpretação leve e autêntica, reforçando a conexão com suas raízes culturais.
De Hélio Contreiras, seu compadre, vem “Estampas Eucalol” resgata memórias da infância e das famosas embalagens de sabonetes ilustradas que marcaram gerações, transformando-as em música nostálgica e poética.
Com o parceiro Jatobá, “Matança” é uma das canções mais potentes de Xangai — um soco poético que expõe a crueldade do poder, e o drama da questão ecológica com a musicalidade raiz. Típico dele: transformar dor em arte que ecoa no coração do povo.
Outro destaque do álbum é “Curvas do Rio”, composta por Elomar Figueira Mello, que transforma o curso sinuoso das águas em uma metáfora para a força e a resiliência do povo sertanejo.
Na voz de Xangai, o rio se torna vivo, serpenteando em cada verso como uma entidade poética. Já “Pés de Milho”, de Jatobá, celebra os ciclos da terra e o trabalho árduo do campo, revelando a beleza na simplicidade do cotidiano.
Encerrando o álbum, “Os Carneirinhos”, de Hélio Contreiras, transporta o ouvinte para paisagens bucólicas, onde a infância e o pastoreio ganham uma delicadeza poética, ecoando como um afago de memórias e ternura.
Xangai não se limitou a este sucesso. Em 1984, lançou Mutirão da Vida, que trouxe faixas emblemáticas como “Kukukaya”, de Cátia de França, e “O Pidido/Clariô”, de Elomar.
A discografia de Xangai reflete sua rica trajetória musical, unindo o popular ao erudito e celebrando as raízes da cultura brasileira. Em 1980, lançou Parceria Malunga, ao lado de Elomar e Arthur Moreira Lima, uma obra que consolidou a união entre estilos diversos.
Em 1984, participou do projeto Cantoria 1, junto com Elomar, Geraldo Azevedo e Vital Farias, um marco na música regional brasileira.
Em 1986, lançou o álbum Xangai canta “Elomar: Cantigas, Incilenças, Puxulias e Tiranas” um tributo ao amigo e parceiro musical, com interpretações emblemáticas como “Desafio” e “Puluxia das Sete Portas”.
Em 1988 voltou a juntar forças com Elomar, Geraldo Azevedo e Vital Farias no lendário Cantoria 2. Era como se os ventos do sertão soprassem forte, costurando histórias e melodias que ecoam na alma dos que carregam a terra nos olhos.
Já nos anos 1990, esse cantador, feito de poesia e chão batido, seguiu tecendo seu universo musical com a destreza de quem enxerga o mundo com olhos de passarinho.
Em 1991, apresentou Dos Labutos, no qual faixas como “Ana Raio” e “Bahia de Calça Curta” revelam seu lirismo e humor característicos.
E assim Xangai seguia, traduzindo as trilhas da natureza em notas e versos, deixando em cada acorde um rastro de sensibilidade.
Foi em 1993 que lançou Lua Cheia-Lua Nova, um álbum que parecia capturar o encantamento da lua que governa as noites do sertão e a harmonia que só ela sabe derramar sobre as paisagens.
Em 1996, em parceria com Renato Teixeira, lançou Aguaraterra, uma celebração das conexões sertanejas. Em 1997, com Cantoria de Festa, reafirmou o valor da simplicidade com músicas como “Nóis é Jeca, Mas é Jóia”, de Juraíldes Cruz. Em 1998, apresentou Um Abraço Pra Ti, Pequenina, um álbum marcado pela saudade e celebração da memória.
Iniciando os anos 2000, Xangai manteve a continuidade de sua produção artística. Em 2001, lançou Brasileirança, em parceria com o Quinteto da Paraíba, reafirmando seu compromisso com a cultura brasileira. O álbum inspirou o nome do programa apresentado por Xangai na TVE Bahia e Rádio Educadora FM apresentado entre 2001 a 2006, com reprises até 2010.
Em 2004, apresentou Nóis é Jeca, Mas é Jóia, mais uma vez em, celebrando a simplicidade e a riqueza da cultura popular.
Em 2006, trouxe Estampas Eucalol, um trabalho ao vivo que resgata memórias e tradições musicais.
Em 2015, Xangai lançou o álbum “Xangai Canta Xangai”, obra que sintetiza sua trajetória artística ao reunir releituras de seus clássicos e novas composições. O disco equilibra tradição e inovação, mesclando a simplicidade do violão com arranjos sofisticados, contando com a participação de Jaques Morelenbaum, parceiro bem das antigas.
Ao reinterpretar sucessos como “Qué que tu tem canário” e “Estampas Eucalol”, além de apresentar material inédito, Xangai reafirma seu olhar poético sobre o sertão e consolida seu legado como um dos grandes nomes da música regional brasileira.
Mais do que um registro musical, o álbum representa um diálogo entre o artista experiente e suas raízes, demonstrando como sua arte transformou a cultura sertaneja em linguagem universal sem perder autenticidade, seu último trabalho oficialmente lançado (2015). Xangai com leveza e vigor continua na ativa, em shows, eventos e projetos pessoais e coletivos.
Ao longo de sua carreira, Xangai colaborou com nomes como Capinan, Geraldo Azevedo, Vital Farias, Renato Teixeira, Jaques Morelenbaum, João Omar, Juraíldes Cruz, Hélio Contreiras e Paôinã.
Entre os projetos mais emblemáticos está o Cantoria, que transformou palcos em celebrações da cultura nordestina, conectando o público às memórias de uma terra rica em história e poesia.
Influenciado por mestres como João do Vale, Cartola, Lupicínio Rodrigues e Tião Carreiro, Xangai também encontrou inspiração nos repentistas, como Bule-Bule. Ele não se limita ao passado, dialogando com artistas contemporâneos como Chico César e Herbert Vianna, provando que sua música é um constante renascer.
A obra de Xangai não é apenas uma coleção de álbuns; é um testemunho da força da música como preservadora de memórias e como elo que conecta gerações.
Qué que tu tem canário é a síntese disso: um relicário cultural que transforma o simples em sublime, o regional em universal. Xangai, com sua voz serena e interpretação poética, nos leva ao coração do sertão, onde cada nota é um convite para redescobrir a beleza das coisas essenciais.
Eugênio Avelino, o Xangai, transcende a música. Sua arte é como o vento que percorre os campos: eterna em sua jornada, moldando o mundo ao seu redor enquanto alimenta a alma de quem a escuta. É como dizem nas veredas: ele canta, mas é como se contasse histórias que já nascem antigas e, ao mesmo tempo, sempre novas. É música que mora nas curvas do tempo. Que não se acaba, apenas se espalha.
Aqui, completo, um disco marcante em minha vida: Qué que tu tem canário?
SONZAÇO!
Renato Queiroz é professor, compositor, poeta e um apaixonado pela história da música,.
Cara leitora e leitor,
Às vezes a história toma um rumo torto e a gente precisa ajeitar as curvas.
Pois é, escorregamos na curva!
Na pressa, acabamos trocando Nanuque (MG) por Vitória da Conquista como berço da sorveteria Xangai.
Pedimos desculpas pelo deslize!
A vida tem dessas, não é?
Mas como toda boa estrada sinuosa, a gente vai endireitando o caminho — de preferência com um sorriso no rosto.
Felizmente, com vocês no banco do carona, até o tropeço vira história!