Aldeia Nagô
Facebook Facebook Instagram WhatsApp

Adeus, Francisco! Por Renato Queiroz

4 - 6 minutos de leituraModo Leitura

No dia 17 de dezembro de 1936, o bairro de Flores amanheceu como tantos outros: o sol já pesado, o cheiro de pão saindo das padarias, os bondes rangendo sobre os trilhos, como se reclamassem da rotina.

Senta que lá vem História!

Na casa dos Bergoglio, o rádio, sempre fiel, deixava escapar um tango de Gardel — talvez “Volver”, quem sabe “El día que me quieras” —, enquanto os sinos da Igreja de San José batiam as horas com aquele jeito solene de quem não tem pressa.

O mundo não sabia ainda que aquele menino, Jorge Mario Bergoglio, nascido entre melodias de saudade e fé, um dia seria voz para muitos.

Regina María Sívori, sua mãe, tinha mãos pequenas e rápidas, que tanto amassavam massa para o jantar quanto apertavam o terço ao entardecer. Era ela quem ensinava ao pequeno Jorge que Deus não estava apenas nos altares, mas também no pão repartido, no riso dos vizinhos, no silêncio que vinha depois do último acorde do tango.

O pai, austero, trabalhador, olhava o filho com um orgulho calado — aquele menino que crescia entre a cadência do bairro e os murmúrios da missa.

Mario José Bergoglio, homem de números e contas, tinha nas veias o sangue obstinado do Piemonte, mas nos dedos, a leveza de um sonhador. Seu violino não era dos mais finos, mas sabia extrair-lhe notas que enchiam a casa — ora um trecho de Mozart, como quem recita uma oração, ora um tango arrepiado, daqueles que Piazzolla ainda não tinha aprisionado no papel.

Jorge cresceu ao longo dos anos: técnico em química, sacerdote, bispo, arcebispo, cardeal e, posteriormente, o empático Papa Francisco

Jorge Mario Bergoglio não separava o sagrado do profano — pra ele, o mundo também era literatura, povo, gente e música.

A literatura era para Francisco um rio de pensamento e fé, além dos livros sagrados e encíclicas. Citou Dostoiévski, Dante e Borges em discursos.

Ele mergulhava em Borges (Ficções), buscando os labirintos da identidade e da verdade, e em Eliot (Terra Desolada), sentindo a angústia da vida e do tempo. Em Proust (Em Busca do Tempo Perdido), encontrava a memória como fio condutor da existência.

A leitura, como a vida, fluía—nem sempre reta, nem sempre simples, mas sempre essencial. Para ele, os livros não apenas narravam histórias, mas iluminavam caminhos.

E quanto à música, o amanhecer tinha acordes, a dor e a alegria tinham melodia, e até o silêncio tinha seu refrão.

Ele sabia que a fé não cabia só nos livros e na música, que a espiritualidade não era só reza: era dança, era batuque, era voz, era o grito e o sussurro da alma.

Ele dizia que, quando as palavras não conseguem se expressar, a música pode ser um grande gesto de reflexão, oração, comunhão e pacificação – um presente.

O coro das igrejas mais simples nos conecta de uma maneira reveladora, enquanto o tango, ao mesmo tempo intenso e suave, oferece conforto, como um pão compartilhado.

Sua relação com a música também incluía gêneros populares, como o choro e a milonga, refletindo suas raízes latinas. Ele apreciava artistas como Pixinguinha, Carlos Gardel e Ada Falcón.

Além disso, admirava Mozart, Beethoven e Bach, considerando Et Incarnatus Est, da Missa em Dó menor de Mozart, como uma peça sublime. A obra inacabada de Mozart, na sua Missa em Dó menor, K. 427, que Francisco considerava inspiração na sua beleza singular.

Das milongas, as tradicionais – aquelas com letras sociais, ritmo marcado e um pé no folclore urbano, ele mesmo brincou:
“Eu dançava mal, mas com entusiasmo!”

Inovador e atento à contemporaneidade, o Papa lançou Wake Up! em 2015, unindo sermões e rock progressivo.

O álbum trouxe mensagens religiosas em vários idiomas com arranjos musicais modernos. A faixa Wake Up! Go! Go! Forward! se destaca por sua sonoridade que remete ao estilo de Pink Floyd, combinando espiritualidade com elementos do rock experimental.

Muitos se perguntaram por que ele escolheu essa abordagem, mas Francisco estava certo: a música é um poderoso veículo de conexão, reflexão e diálogo.

O Vaticano já havia lançado álbuns musicais antes, como Abbà Pater (1999), com João Paulo II, e Alma Mater (2009), com Bento XVI, mas nunca um papa havia se associado diretamente a um gênero musical popular como o rock.

Francisco também participou de eventos musicais, como o Festival of Families na Filadélfia, onde prestigiou apresentações de Aretha Franklin e da banda The Fray. Sua abordagem musical era uma extensão de sua visão inclusiva e dialogante, conectando tradição e modernidade de maneira única.

Quando o fardo do mundo se torna insuportável, na música e em seus mistérios, sempre existe um espaço que nos recorda da esperança de um mundo cúmplice, inclusivo e solidário.

O Papa Francisco era um fã incondicional do tango revolucionário de Astor Piazzolla.

Na saudade, com seus familiares e amigos, Piazzolla, ao perder seu pai, criou Adiós Nonino — um adeus, em alguns momentos triunfante, e em outros quase silencioso, mas repleto de lembranças e emoção. A música, afinal, preserva aquilo que o tempo tenta apagar.

Aqui, Astor Piazzolla interpreta Adiós Nonino com a Sinfônica Cologne Radio Orchestra da Alemanha. Extraído do documentário Astor Piazzolla: The Next Tango.

Piazzolla considerava Adiós Nonino (1959) sua obra-prima e uma de suas composições mais pessoais. Era a obra da qual mais se orgulhava e que a considerava “sua melhor criação”.

Descanse, Francisco, mas que tua luz nos inspire a construir um mundo mais justo e fraterno, como sonhavas.

SONZAÇO!
Renato Queiroz  é professor, compositor, poeta e um apaixonado pela história da música,.

Compartilhar:

Mais lidas

7 comentários

  • Telma Ferraz disse:

    Grata Renato por nos oferecer mais esse lindo texto sobre peculiaridades da vida do homem Francisco e nos apresentar está música maravilhosa de Astor Piazzolla. Música para se ouvir de olhos fechados deixando tocar em nossa essência. Papa Francisco realmente era uma personagem especial, de maravilhoso gosto musical e de imensa empatia.

    • Renato Queiroz disse:

      Telma, agradeço de coração as suas generosas palavras!
      Vivas ao Papa Francisco!
      🙏🏽

  • MESSIAS FRANCA DE MACEDO disse:

    A música dos deuses!
    Ou de um Deus único, quiçá.
    Deuses e/ou Deus, o eterno Papa Francisco
    está, neste momento, a confabular.
    No cardápio, música, alegria, choros,recordações, reflexões…
    Qual o caminho que nos leva a Cristo?
    (…)
    Renato, parabéns por nos brindar com mais um bálsamo de conhecimentos e emoções à flor da pele!

  • JOSANE LINO QUEIROZ disse:

    Que bela e justa homenagem, Renato!!! Em meio a tantos textos escritos o Papa, a sua escrita ao tempo que informativa é doce e terna. Parabéns! E um enorme SALVE ao Papa Francisco

    • Renato Queiroz disse:

      Querida Josane,

      Agradeço por sua generosidade e apoio. É um presente que aquece meu o coração.
      Forte abraço

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *