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Aldeia Nagô
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O Festim Canibalesco por Lula Afonso

6 - 8 minutos de leituraModo Leitura
Lula_Afonso2

Em seu habitual estilo performático, o historiador Eduardo Bueno prefacia e louva o livro Duas Viagens ao Brasil, de Hans Staden: “Está tudo aqui: ação, aventura e história. Antropologia e antropofagia, sangue e pólvora. Cenários luxuriantes, conflitos tribais, expansão colonial, guerreiros emplumados, piratas franceses, fé e ceticismo. Tudo narrado pela ótica de um homem comum, um forasteiro – um estrangeiro em um mundo estranho”.

O livro de Staden foi best-seller desde o lançamento, numa terça de Carnaval de 1557 em Marburgo, Alemanha. Pirateado já na segunda edição, fez a cabeça dos europeus sobre as mirabolantes terras descobertas no além-mar e já somava 70 edições em meados do século XVIII. A narrativa crua é apimentada por xilogravuras sobre desenhos do próprio autor, que ilustram a edição pocket da L&PM (2010). Imagens tornadas ainda mais impactantes pelas mãos do mestre flamengo Theodore de Bry.

Mais de cinco séculos depois, no país que Staden viu nascer, o relato surpreendente e as imagens fortes mantidas na tradução brasileira influenciaram o Movimento Antropofágico, no bojo do nascituro modernismo brasileiro, inspirando, entre outras, Tarsila do Amaral a pintar o seu carismático Abaporu.

Dotado de memória minimalista, o jovem Hans resgatou em detalhe os cenários, personagens, datas e peripécias de sua passagem por aqui, nos primórdios da era colonial. Presente no palco dos acontecimentos, escapou de ser devorado, mas sua carne não escapou dos tormentos da época e do ambiente: fome, maltratos, ferimentos de armas, doenças, sequelas. Nesse entretempo, a roda do destino lhe poupou de desgraças para o submeter a outras: sobreviveu a dois naufrágios e por oito meses permaneceu prisioneiro dos índios, sob constante ameaça de ser canibalizado, sendo não poucas vezes preparado para os rituais nos quais entraria como prato principal.

Guiado pela intuição e bafejado pela sorte, o jovem aventureiro bebeu e comeu com os índios que o capturaram, dos quais se tornou conselheiro e vidente, mas permaneceu sempre prisioneiro. Nessa condição lutou ao lado deles, assim como havia atuado, antes, para os portugueses e espanhóis como artilheiro mercenário; conheceu caciques famosos como o notório Cunhambebe, de quem chegou a ser confidente, e negociou pessoalmente um contrato de trabalho com o governador geral Tomé de Souza, fundador da primeira capital do país.

É, assim, preciosa a contribuição testemunhal de Staden ao cabedal de registros sobre a vertente ameríndia dentre as três etnias básicas que mesclaram o povo brasileiro: os índios nativos, que somavam uns cinco milhões no início da colonização, os colonizadores portugueses e os negros trazidos do continente africano.

 

 

Fiquemos com os índios, tema do livro, que delineia os traços de caráter desses nossos ancestrais, desvendando o “terroir” da sua basilar contribuição à formação do brasileiro contemporâneo. Evidencia-se que os costumes e tradições dos silvícolas, na forma descrita por Staden, lançam luz sobre as raízes do “caráter nacional” dos dias correntes. Alguns desses traços, como a famosa cordialidade proclamada por sociólogos de alto calibre, são, sim, virtuosos em um planeta mal humorado. Há outros menos louváveis, como a decantada permissividade e complacência ante transgressões dos que “saem da linha”.

Ora, essas tolerâncias “evoluíram” e endossam, hoje, práticas sofisticadas entre os bem-sucedidos das altas rodas. Nossos políticos, empresários, magistrados, lavadores de cérebros e altos, médios e baixos funcionários de todas as esferas da República têm muito o que dizer sobre o tema e agem com liberdade de movimentos garantida pela aceitação social tácita e um grau de impunidade desconhecido em países que levam a sério a cidadania e a educação dos seus jovens. O controverso significado da expressão “berço esplêndido” por certo acolhe e sedimenta este arquétipo genuinamente nacional.

Ora, essas tolerâncias “evoluíram” e endossam, hoje, práticas sofisticadas entre os bem-sucedidos das altas rodas. Nossos políticos, empresários, magistrados, lavadores de cérebros e altos, médios e baixos funcionários de todas as esferas da República têm muito o que dizer sobre o tema e agem com liberdade de movimentos garantida pela aceitação social tácita e um grau de impunidade desconhecido em países que levam a sério a cidadania e a educação dos seus jovens. O controverso significado da expressão “berço esplêndido” por certo acolhe e sedimenta este arquétipo genuinamente nacional.

Ora, essas tolerâncias “evoluíram” e endossam, hoje, práticas sofisticadas entre os bem-sucedidos das altas rodas. Nossos políticos, empresários, magistrados, lavadores de cérebros e altos, médios e baixos funcionários de todas as esferas da República têm muito o que dizer sobre o tema e agem com liberdade de movimentos garantida pela aceitação social tácita e um grau de impunidade desconhecido em países que levam a sério a cidadania e a educação dos seus jovens. O controverso significado da expressão “berço esplêndido” por certo acolhe e sedimenta este arquétipo genuinamente nacional.

 

Esses traços do brasileiro primordial desmistificam e confirmam, a um só tempo, a alegoria do “bom selvagem”: o inocente feliz e cordial perfeitamente integrado ao seu ambiente, ancorando o mito de Rosseau e outros iluministas do século XVIII de que “o homem é bom por natureza. É a sociedade que o corrompe.”  Essa percepção tornou-se lugar-comum na literatura européia da época, a jusante dos relatos que chegavam d’além-mar sobre os usos e costumes dos “naturais”, que viviam nus na mata pródiga, descontaminados do pecado original e apartados dos vícios civilizados. O próprio Cristóvão Colombo proclamou “haver chegado ao paraíso terreno”. Claro que relatos sobre práticas “bárbaras” como o canibalismo, descrito vivamente por Staden, criaram uma contracorrente a esse pensamento.

Vale reproduzir um trecho da descrição crua e pungente de Staden sobre os preparativos e o ritual da matança de inimigos capturados: “Quando começam a beber, fazem vir o prisioneiro. Este tem de beber com os selvagens. Eles conversam com ele. Quando terminam de beber, descansam no dia seguinte e constroem para o prisioneiro uma pequena barraca no lugar onde deverá morrer. Este passa a noite deitado nela, sob severa vigilancia. De madrugada, bem antes do amanhecer, eles vêm e dançam e cantam ao redor da maça com a qual deverão matá-lo, até o raiar do dia. Tiram, então, o prisioneiro da barraca, desmontam-na e abrem uma clareira. Soltam a muçurana de seu pescoço e passam-na em volta do corpo e depois puxam-na com força, dos dois lados. Aquele que o matará volta a pegar a maça, e diz: ‘Sim, estou aqui, quero matá-lo porque a sua gente matou e comeu muitos dos nossos’. O prisioneiro lhe responde: ‘Tenho muitos amigos que saberão me vingar quando eu morrer’. Nisto, o algoz golpeia o prisioneiro na nuca, de forma que lhe jorre o cérebro (…)”. Fiquemos por aqui, em favor dos vegetarianos.

Não relaxou nem gozou, mas sobreviveu

 Os rigores da formação religiosa do aventureiro Staden, sua racionalidade teutônica e um acurado senso de observação deram-lhe disciplina e determinação para resistir às adversidades e perigos de um mundo desconhecido, em tudo diferente da sua bucólica cidade natal, Hessen. A curiosidade e o instinto de sobrevivência fizeram o resto. Por outro lado, essa mesma rigidez parece ter-lhe tolhido o gozo das alegrias e liberdades lúdicas de uma aldeia nos trópicos, em profunda comunhão com a natureza.

Acurado observador, registrava tudo o que se lhe passava em volta, incluindo nomes de lugares e pessoas. Com isso, resgatou as memórias que mais tarde lhe fariam a fama e, principalmente, se constituiriam em preciosos registros testemunhais daqueles tempos em que pouco se escrevia e viver era mais perigoso do que na época e lugares descritos, séculos mais tarde, por João Guimarães Rosa.

Talvez não tão perigosos quanto o atual cenário brasileiro de criminalidade desatada, deterioração ética e neo-obscurantismo religioso, avaliados com pessimismo pelo escritor João Ubaldo em coluna de jornal: “Nosso atraso é muito mais que econômico ou social, é antes um estado de alma, uma segunda natureza, uma maneira de ver o mundo, um jeito de ser, uma cultura. Temos pouco ou nenhum espírito cívico, somos individualistas, emporcalhamos as cidades, votamos levianamente (…)”. E por aí vai…

Mas os índios da Colônia nada têm a ver com esses excessos da civilização. Suas motivações eram outras. E dê-se ao jovem Hans um desconto por ser o seu relato em boa parte atemorizante, contaminado pelo terror diuturno de estar-lhe reservada a sina de servir como prato principal de um banquete ritual, levando-o sobrepesar (como faz hoje a TV em noticiários sensacionalistas) uma tradição em detrimento das vivências multifacetadas do cotidiano, como se em torno do canibalismo se estruturasse a cultura dos nossos ancestrais nativos. (Lula Afonso).

Publicado originalmente em http://www.wagau.blogspot.com.br

 

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