A alma musical no buraco negro por Antonio Godi
Adianto, ter relutado e, muito em
publicar esse texto. Até porque já não suporto mais o assédio oportunista sobre
a herança estético-musical de Michael Jackson. Decidi arriscar porque uma
canção que nos assalta com emoção não deve ir para a gaveta. Michael cresceu e
conviveu com um contexto de existência diferenciado. Marcado pelo impacto de descobertas
eletrônicas e químicas que dariam novos contornos à humanidade.
O astro deve
ser visto como herói e vítima de seu tempo. Onde os conflitos políticos, bélicos,
familiares, étnicos, éticos, técnicos, químicos e culturais demarcam os
mistérios hipócritas de uma contemporaneidade inesperada.
Michael é uma representação mítica
de um contexto humano profundamente reconfigurado e resignificado. Por conta
das novas variáveis elétricas que apontam as sonoridades e as inusitadas
visibilidades eletrônicas como componentes de novas investidas culturais. O
eterno menino é um novo Davi apontando suas pedras musicais e visuais na
direção de uma Babilônia capitalista em processo de mudanças. Michael Jackson,
apostou sua fortuna juvenil na constituição de narrativas audiovisuais e
performáticas sem igual. O menino continuará genial enquanto, compositor,
cantor, dançarino e representante de inesquecíveis performances. Seus longos
clips reverenciados e premiados enquanto visionários da construção do formato
do DVD já anunciavam uma nova estratégia das disputas culturais e
mercadológicas de uma humanidade marcada pela pluralidade estética e eletrônica.
Michael em sua infantil grandeza
tem sido visto como um ícone isolado e fora do cenário de seu contexto
histórico. O "pequeno grande homem" foi um protagonista precoce de uma cena musical
marcada pelas presenças de outros grandes protagonistas na construção da Black Music.
Michael é filho e, legítimo representante, de uma experiência étnica, política
e cultural diferenciada que teve a estética elétrica e musical como referência.
Trata-se das efervescentes décadas de 60 e 70 quando um novo formato de música
negra passa a contaminar o milionário mercado discográfico e radiofônico. Tudo
começa em fins dos anos 50 com a criação da gravadora Motown dirigida pelo
produtor Berry Gordy da cidade dos automóveis em Detroit. Durante
as décadas seguintes a Motown passa a gravar e agenciar os maiores astros
musicais do período consolidando estilo e comportamentos culturais que a mídia
denominaria de soul music. A
saber, Diana Ross, James Brown, Marvin Gaye, Quincy Jones, Lionel Ritchie, Ike
and Tina Tuner, etc.
Michael administra sua vida de
sucesso e inusitadas aberrações nesse cenário de francas novidades e agonias.
Conflitos humanos tantos que dão conta de uma guerra étnica e racial que no
âmago do capitalismo testemunha assassinatos de políticos tidos como democratas
e importantes ativistas negros. Lembro do militante pacifista, M. Luter King e do
radical Malcon X. O cara vivenciou tragédias sócio-políticas enquanto arriscava
sucessos musicais na adolescência convivendo com uma guerra química e desumana
no Vietnã. Ele viu Marvin Gaye ser assassinado pelo próprio pai e Ike Turner
impondo violentamente sua masculinidade sobre a grande Tina Turner. Ele
conviveu com violências paternas e domésticas na sua infância. E eternizou e
mitificou essas vivências na construção inusitada de sua obra vendo Jimi
Hendrix e Janis Joplin consagrando uma Black music para além da cor, do tempo
das ameaças químicas e de mortes inesperadas.
Ele viu tudo quando participou de
ações humanísticas em prol da humanidade plural e de uma África sofrida. Em
detrimento de si mesmo, ele foi um negro que ousou reconfigurar seu corpo e sua
cor em prol de um projeto estético inusitado. Tudo com base nas novas
tecnologias eletrônicas e químicas. Ele sacou as novas fronteiras geográficas
da diáspora negra e imprimiu ações junto ao Olodum baiano e o poderoso samba
dos morros cariocas. Os últimos "clips" de sua trajetória registra uma vontade
humana plural. Nessa linha ele viu muito sobre todos nós e pouco sobre si
mesmo. E aí, a Bahia, o Brasil e, a estrela da diáspora brilha na vida e na
morte.
Antonio Jorge Victor dos Santos Godi
(Ator, Antropólogo, Professor da UEFS/DCHF/NUC)
E-mail:antoniojorgegodi@gmail.com