Aldeia Nagô
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A capitulação da esquerda: o caso italiano por Marina Minicuci*

18 - 26 minutos de leituraModo Leitura

"O momento em que as
esquerdas italianas consideradas no seu conjunto estão no máximo do poder é na
verdade o momento da sua maior fraqueza.

Não é um paradoxo e não é por acaso se
no sucesso se juntou uma esquerda reformista tão moderada, a propender para o
próprio abandono da palavra esquerda (DS e Margherita tentam formar o Partido
Democrático), com uma grande parte da esquerda radical tão moderada a propender
para o próprio abandono da palavra comunista e à revisão do próprio
símbolo."


Um pouco de história

Houve um certo período em
Itália que o PCI foi o maior Partido Comunista do Ocidente, tendo chegado a
obter 35% dos votos.

O PCI foi constituído em
Itália no ano de 1921 e, na primeira fase, conduzido por Gramsci e Bordiga que
procuraram conduzir o proletariado a atacar um Estado Burguês profundamente
debilitado pela II Grande Guerra mundial conflito, mas recusando alianças com o
Partido Socialista, responsável por anteriores insucessos revolucionários e com
pouca combatividade contra as classes burguesas. A aliança com as forças
socialistas tornou-se no entanto indispensável perante a reacção do fascismo
(que em 1926 passou a regime totalitário) e forçou o PCI (enquanto Gramsci se
encontrava na prisão) a actuar na clandestinidade por meio de Palmiro
Togliattti que em 1927, do estrangeiro, assumiu a direcção.

Divergências estratégicas
levaram a fracturas e expulsões (Bordiga,Tasca, Terracini, Leonetti, Ravazzoli,
Tresso, Silone) e à realização de pactos de unidade com o Partido Socialista e
com o movimento de “Justiça e Liberdade”. Estava em curso e activa a luta da
resistência quando Togliatti regressou em 1944, e preferiu, à via
revolucionária, a aliança com todos os outros movimentos de massas para criar
juntamente com estes um Estado Democrático e Progressista de ampla base
popular.

Morto Togliatti em 1964 o
cargo de secretário-geral foi assumido primeiro por Luigi Longo e depois em
1972 por Enrico Berlinguer, defensor do “compromisso histórico” para a
participação do Partido nas responsabilidades de governo. No entanto, este
aspecto programático nunca se concretizou, uma vez que ao grande avanço de
1976, se seguiu um gradual declínio, imputável à brutal campanha mundial de
demonização ideológica levada a cabo pelos USA e por outros países a estes
submetidos.

Com a inesperada morte de
Berlinguer em 1984, sucederam-se na secretaria do Partido primeiro Alessandro
Natta (que sofreu um clara derrota nas eleições administrativas de 1985 e nas políticas
de 1987) e depois Achille Ochetto.

Na sequência da tragédia
consumada na China na praça Tian-An-Mên, duramente condenada por todos os
Partidos Comunistas da Europa, Ochetto alcançou, em Junho de 1989, 27,6% dos
votos e apesar de o PCI divergir, seja na prática como na ideologia, dos
regimes de Leste, a crise, a Ochetto devia parecer sem solução e, de facto, a
12 de Novembro de 1989 lança a proposta de uma profunda transformação política,
organizativa e de denominação do Partido. Em Março de 1990 (com as moções
Ingrao e Cossutta) o Congresso sancionou a “viragem” com a mudança do símbolo
(o carvalho) e do nome: Partido Democrático da Esquerda, PDS que a seguir
perderá o “P” e tornar-se-á apenas DS.

Uma franja interna
divergente, conduzida por Armando Cossuta sai do DS e funda o “Partido da
Refundação Comunista ” (PRC). Depois das eleições políticas de 1994, Ochetto
demite-se, tendo sido eleito para o seu cargo Massimo D’Alema, por sua vez
depois substituído por Piero Fassino, actual secretário-geral dos Democratas
dos DS.

Enquanto isto, na Refundação
Comunista dá-se, em 1998, uma posterior fractura e nasce o Partido dos
Comunistas Italianos [“Partito dei Comunisti Italiani”] (PDC) de Armando
Cossuta (cujo secretário-geral é actualmente Oliviero Diliberto). O “pomo da
discórdia” é que os últimos decidem fazer parte de um governo de
centro-esquerda, enquanto os primeiros aceitam só apoiá-lo de fora. Indo-se
embora Cossuta o comando do PRC vai para Fausto Bertinotti.


Os nossos dias

Estamos nos nossos dias. É o
ano de 2002 e a Itália está literalmente partida a meio entre “berlusconianos”
e “antiberlusconianos”. A situação parece trágica e algumas vezes mesmo
amargamente cómica, parece uma farsa à italiana: um homem com acusações
gravíssimas, quase cumplicidades com a máfia, um conflito de interesses que em
nenhum país do ocidente seria admissível (a mais leve das acusações que lhe é
feita é “evasão fiscal”) foi votado pela maioria dos italianos e, o que é
profundamente trágico, é que entre estes há uma boa parte de voto popular e do
operariado. Não é o mesmo do que sucedia quando dominava sem contestação a
Democracia Cristã (DC): este era um partido construtor da Constituição, com uma
doutrina social, uma implantação sindical, uma referência à Resistência. Agora,
ao contrário, há subalternidade à ideologia do primado do capital e da riqueza.

Um conhecido economista
recentemente desaparecido, de cultura liberal, Paolo Sylos Labini, sugere de
imediato que contra Berlusconi não há outro remédio que não seja o de criar um
governo de unidade nacional, como sucedeu para a frente compacta que se formou
imediatamente após a II guerra mundial, expressão da luta antifascista e na
qual participaram de comunistas a liberais.

Ninguém parece dar-lhe
ouvidos mas, nos factos, depois, isso em alguma medida acontece. É tal a
unânime indignação que a “girotondini” (movimentos de intelectuais de
esquerda), burgueses, realizadores e actores famosos, magistrados indignados,
unem-se “no global” (movimentos antiglobalização), associações pacifistas,
anarquistas, operários, sindicatos, gerando manifestações gigantescas de
protesto que alcançam – no caso daquela promovida pela CGIL – para além de
3.000.000 de pessoas na rua consagrando um novo leader da esquerda, o
sindicalista, então secretário-geral da CGIL, Sérgio Cofferati. Há um movimento
transversal que o apoia que vai da burguesia do centro-esquerda a uma parte da
Refundação Comunista, apoiam-no quase todos os movimentos, tanto os históricos
como os recém-nascidos. Coferatti não é um homem de esquerda, talvez nem sequer
aquilo que se quer para a esquerda, simplesmente não há alternativa. Esta é a
trágica realidade e impõe-se como urgente a derrota de Berlusconi. Ganha por
isso força o “Correntone” com a revista “Aprile” e a homónima associação que
são emanações da área de esquerda do DS dos quais Coferatti e Giovanni
Berlinguer (irmão de Enrico) são presidentes. Fala-se para um certo período de
um dupla Prodi-Coferatti na direcção do centro-esquerda, na qual Prodi estaria
a representar a parte mais ao centro da coligação e Coferatti a parte mais à
esquerda. É então que Bertinotti se sente seriamente ameaçado, posto de parte
de uma liderança à esquerda que até então era incontestavelmente sua e começa a
efectuar aquela viragem que em cumplicidade com D’Alema levará a eliminar
Coferatti do panorama político nacional (actualmente é o presidente da Câmara
de Bolonha), começando a longa marcha para posições sempre mais de direita.


“Do proletariado aos no global (movimentos antiglobalização) a Bad Godesberg de
Berttinotti”

O abandono dos valores
ideológicos do comunismo e a aceleração do processo encaminhado pela Refundação
Comunista e pelo seu timoneiro Fausto Bertinotti, teve início à volta de 2001.
Primeiro vem a declaração de rotura com o estalinismo; depois o abraço nas
trágicas jornadas do G8 de Génova do Movimento “no global”. Em 2003 a escolha
da não violência absoluta (sem distinção entre agressores e agredidos), depois
a constituição do Partido da Esquerda Europeia (do qual Bertinotti é
presidente).Um Partido que se propõe na prática acabar com todos os resíduos da
luta de classes “metendo no centro já não o trabalho mas os trabalhadores”,
“substituindo o conceito de classe pelo de pessoa”, segundo palavras do próprio
Bertinotti.

Em síntese, o novo projecto
que Bertinotti propõe para a “esquerda do século XX” é o “socialismo da
pessoa”. Apenas pretexto para acto a repudiar o marxismo-leninismo e a abraçar
o liberalismo burguês que precisamente nega a existência de classes, da contradição
de classe e da luta de classes, põe no centro o indivíduo, o conceito abstracto
de liberdade individual que, como bem experimentámos se traduz, na prática, na
liberdade dos capitalistas de explorar as massas. A esquerda radical elegante
[“chic”] europeia afasta, além do mais, a construção – pelo menos italiana – de
um amplo alinhamento autenticamente de esquerda que é condição essencial para
conter viragens moderadas na coligação de governo. Por último Bertinotti leva a
cabo o desvio governista completo ao último congresso do PRC em 2005 com a
decisão de concorrer em conjunto com a Unione às eleições políticas e de
participar no eventual futuro governo do economista democrata cristão Prodi.
Pratos fortes estes que são igualmente acompanhados de suculentos
acompanhamentos como a tomada de distanciamento de Cuba de Castro em face dos
fuzilamentos de supostos dissidentes, ocasião em que a Refundação se viu
ultrapassar à esquerda pelos Comunistas Italianos de Diliberto que ao contrário
manifestaram a sua solidariedade ao líder cubano.

Portanto, aquilo que talvez
fosse inevitável fazer para libertar-se de Berlusconi e da cultura belusconiana
que estava a ganhar perigosas raízes em Itália, ou seja unir todas as forças
democráticas para derrotar as direitas, contudo permanecendo cada um com a
própria identidade – amigos transitórios para fazer frente a uma emergência
maior -tornou-se no álibi do PRC para se abrir à “mestiçagem” com associações,
movimentos, pessoas que nestes anos se movimentaram contra a guerra, contra o
liberalismo, sobre o ambiente, sobre os direitos civis, mas que nunca entrariam
num partido que se chama comunista. Para dizer que se os outros não vêm a mim
por causa daquele “Comunista” na sigla que os assusta, serei eu a abrir-me aos
outros entrando num novo sujeito político, que apresente como objectivo criar
uma Esquerda alternativa europeia”. A figura tutelar [Não me recordo de outra e
melhor palavra em português] dos trotskistas italianos, Pietro Ingrao, abençoou
a viragem o desvio e disse: “Se se tratasse de uma nova unidade, de um conteúdo
inovador, nada teria contra: pode-se renunciar ao nome e ao símbolo”.Entretanto
no “Liberazione” órgão do Partido da Refundação Comunista começam a chover
cartas de camaradas que, sempre cada vez mais numerosos, se interrogam: “onde
nos estais a levar? ”.

Mas não são só os camaradas
a aperceber-se, pois já nos inícios do novo milénio os jornais burgueses
titulam a viragem bertinottiana. Goffredo De Marchis na Repubblica de há alguns
anos escreveu: “Do proletariado aos “no global” a Bad Godesberg de Bertinotti”.
O sentido do artigo é que aquilo seria uma longa marcha de Bertinotti para
permanecer comunista de nome e sê-lo sempre menos de facto. Atribuir a culpa à
maldade do jornal burguês não serve. Bertinotti põe em cima da mesa todos os
ingredientes para mudar radicalmente a natureza do partido. Para levá-lo para
fora dos limites do comunismo. No interior do Partido o ar torna-se
irrespirável e antes do último congresso Bertinotti tem de levar a cabo, à pressa,
uma campanha de inscrições e actualização das inscrições porque corre o risco
de ir em minoria. Pouco lhe importa a forte dissidência porque já se desfaria
de bom grado dos ortodoxos, a única coisa que agora o preocupa é obter a
maioria no último congresso em que será secretário-geral. Alcança 59%.

Nas correntes antagonísticas
no interior da Refundação, da Ernesto aos trotzkistas de Ferrando, é um
borbulhar de alarmes preocupados. “O projecto não é novo, a novidade é a
representação cénica” explica Ferrando, segundo o qual as últimas saídas de
Bertinotti outra coisa não são que “uma cobertura cultural para o desvio de
governo”.Com a sua revisitação do comunismo, “que desemboca na metafísica
celeste”, para Ferrando, o secretário do Prc está a oferecer aos “tubarões do
capital” (Banca, Cofindustria, grandes empresas, etc.) uma imagem que “prepare
para pedir lugares no novo governo de centro-esquerda e, de facto, a acabar a
oposição comunista, com vista a um envolvimento do Prc num governo de
centro-esquerda. Bertinotti “apostaria, em acordo com D’Alema, em repartir os
despojos do cofferatismo”. Isto declara o imprudente Ferrando. Mas também a
área dos ex cossutianos considera a posição do secretário-geral uma vigorosa
guinada à direita. Cláudio Grassi, da área de L’Ernesto pronuncia-se assim: “
Devemos procurar um entendimento possível com o centro-esquerda e
contemporaneamente manter a nossa identidade comunista. Uma coisa é revisitar
criticamente a história do século XX, outra é liquidá-la apressadamente. Se é
um erro pensar que tudo está escrito, não menos grave é não ter mais pontos de
referência”. Quanto ao repúdio da cultura de poder e ao pacifismo absoluto,
argumenta mais prudente Grassi, “são temas abertos, mas certo é que a
transformação da sociedade capitalista põe o problema da conquista do poder”.

No plano do acordo com o
centro-esquerda – acordo querido não nos últimos instantes para obter o
terceiro cargo do Estado, a Presidência da Câmara dos Deputados – Bertinotti
vendeu também o último respeitável resíduo da história comunista italiana. E o
Prc está cada vez mais a assumir os contornos de um partido compatível com o
sistema, que já não atrapalha muito, que se contenta com conquistas sectoriais
se não de fachada.

No último Congresso da
Rifundazione um documento conjunto das minorias do partido (que representam
41%) diz assim:

“O que sucedeu em sede de
Comissão e na discussão plenária do Congresso a propósito das alterações dos
Estatutos do Partido é um facto muito grave, sem precedentes em toda a história
da Refundação Comunista.

Certa de uma pequena mas
segura diferença de votos, a maioria decidiu desfigurar os Estatutos do Partido
a golpes de maioria, não mostrando qualquer disponibilidade para o confronto
com as oposições internas. Não obstante a firme oposição sempre mostrada por
todo o Partido nos confrontos dos princípios e da prática do sistema
maioritário, a maioria não hesitou em aplicar a sua lógica: quem vence tem
direito a tudo.

Por isso estamos decididos a
tomar uma decisão até aqui nunca assumida e que nunca teríamos querido tomar: a
de votar contra os Estatutos do nosso Partido. Grave e sempre irreversível, o
uso do sistema maioritário é-o sobretudo quando a matéria do debat são as
normas que regulam a vida de uma comunidade e que deveriam tutelar a democracia
interna protegendo as minorias de eventuais repressões da maioria.

Sobre aspectos centrais da
estrutura organizativa do Partido (a começar pela composição e pelas funções da
Secretaria nacional, da Direcção nacional e do Executivo), a maioria impôs
alterações estatutárias que de agora em diante lhe permitirão tomar decisões
sem o substancial confronto com as minorias. Nestas novas condições, a condução
política e a efectiva gestão do Partido, serão assumidas por um organismo (o Executivo)
que – em representação de instâncias territoriais e de departamento – no
entanto exprime quase exclusivamente a parte maioritária do Partido,
expropriando a Direcção Nacional de qualquer efectivo papel dirigente.. Perante
tal operação de construção substancialmente maioritária dos organismos
dirigentes, as minorias pedem conjuntamente que não se proceda no momento à
eleição da próxima Direcção Nacional e decidem – caso este pedido não viesse a
ser aceite – suspender a própria presença na Direcção Nacional, à espera de
conhecer a composição do conjunto dos novos organismos dirigentes (…)”.

Bertinotti sai do Congresso
com a presidência da Câmara de Deputados quase “no bolso”, sabendo que este é o
seu último ano de secretário-geral, deixando a secretaria ao inconsistente
Giordano, um dos seus delfins e fidelíssimos, recebendo os aplausos de todos os
burgueses de esquerda e também das direitas, mandando embora alguns bocados do
Correntone, a parte de esquerda dos DS dos quais Cofferati foi leader, e fazendo
quase o pleno dos movimentos burgueses, para além de partes significativas dos
“no global”. Aos 41% de dissidentes do PRC caberiam 28 lugares no Parlamento
Italiano em razão dos 68 parlamentares destinados ao PRC. Ser-lhe-ão atribuídos
7. Em nome da democracia interna do Partido: exactamente um quarto de quantos a
que teriam direito. A desculpa é o sacrifício para abrir-se à “mestiçagem” e
fazer sentar-se na sala um no global, um transsexual, alguns saídos do DS…. mas
naturalmente a razão principal é reduzir ao mínimo o número de
“perigosos”comunistas no Parlamento.

Escreve Achille Ochetto que
Bertinotti levou a cabo a viragem que ele tinha realizado 15 anos antes e pela
qual Bertinotti tinha saído do partido dos DS e tinha contribuído a fundar a
Rifondazione Comunista. Poder-se-ia acrescentar que não só Bertinotti deu razão
a Ochetto com 15 anos de atraso, mas deu razão também a Cossutta com 8 anos de
atraso, visto que então os Comunistas Italianos [Comunisti Italiani] tinham-se
decidido a fazer parte de um governo de centro-esquerda, facto que provocou a
enésima cisão.

Enquanto isso desenvolve-se
e está viva a polémica para a candidatura de Ferrando (o líder dos trotzkistas)
que talvez não sendo o único das moções críticas a estar na lista (há outros 6)
ele é o único que recusa declaradamente qualquer convergência programática com
a Unione conduzida por Romano Prodi, particulrmente com a coligação da Ulivo
(maioria DS e Margherita) denunciando vigorosamente uma vizinhança deste último
ao vértice da Cofindustria, às grandes empresas e ao sistema bancário.
Recusando também a política de concertação da CGIL e a disponibilidade para
aceitar guerras avalizadas pela ONU ou de carácter “humanitário” (como a do
Kosovo, apoiada pelo governo D’Alema em 1999), esclarece também a sua posição
em relação à política externa. A 13 de Fevereiro de 2006, numa entrevista ao
Corriere della Sera, Ferrando discute com o entrevistador da Guerra no Iraque
mostrando-se convencido, ficando firme a sua oposição aos actos de terrorismo
de matriz fundamentalista, do direito à legítima resistência dos povos
agredidos contra os contingentes militares, incluindo aquele italiano; além
disso, referindo a tragédia de Nassiriya na qual morreram 19 italianos (muitos
dos quais carabinieri), denuncia também uma ligação entre o envio dos militares
para a cidade iraquiana e os interesses da ENI (Entidade Nacional de
Idrocarburantes) por motivos de exploração de poços de petróleo. Ferrando diz
“nós somos pela reivindicação do direito de sublevação do povo iraquiano contra
as nossas tropas. Todos os episódios nos quais houve mortos nossos, entram em
tudo e para tudo nas responsabilidades de uma missão militar ao serviço da
ENI”.

O Sr. está a dizer que os
nossos soldados mortos em Nassiriya estavam ao serviço da ENI?

Pergunta-lhe o entrevistador
do jornal. “Isto disse-o um documento reservado produzido da autoria do
Ministério das Autoridades Produtivas de António Marzano, seis meses antes da
guerra, no qual se sustentava um interesse activo da Eni em ir para Nassiriya
porque ali havia a disputa do petróleo. E esta é a posição dos 41% da
Rifundazione que não está satisfeita com o programa da Unione: devemos retirar
do Iraque e basta, sem condições. Eu sou contra qualquer que seja a missão
militar no estrangeiro, seja nos Balcãs como no Afeganistão, com ou sem ONU”.
Mas em Gaza ou na Bósnia, os nossos vigiam o cumprimento de acordos de
paz……insiste o entrevistador..
“Não existem intervenções militares humanitárias ou supra parte. São sempre
funcionais aos interesses de parte”. Em suma, daqueles “sete magníficos”
comunistas prontos para sentar-se no Parlamento, Ferrando é o único que não tem
a boca prudentemente fechada até ter tomado posse.

E fala precisamente no
delicado momento em que Bertinotti está a manobrar para chegar a Presidente da
Câmara de Deputados e, na verdade, não se pode permitir que haja alguém que vá
contar apenas a realidade dos factos, a verdade. O caso suscita acaloradas
polémicas no mundo político e da informação e o PRC decide não candidatar
Ferrando ao Parlamento. Fala-se também de expulsão do Partido, que depois não
acontece, como se falará mais tarde de expulsão do Partido daquele punhado de
deputados da minoria do PRC que votaram (quatro gatos fustigados pela
comunicação social e pelo PRC como imbecis dispostos a realizar um atentado
contra o democrático governo Prodi) contra o refinanciamento da missão no
Iraque.

A mutação genética da esquerda italiana

O momento em que as
esquerdas italianas consideradas no seu conjunto estão no máximo do poder é na
verdade o momento da sua maior fraqueza. Não é um paradoxo e não é por acaso se
no sucesso se juntou uma esquerda reformista tão moderada, a propender para o
próprio abandono da palavra esquerda (DS e Margherita tentam formar o Partido Democrático),
com uma grande parte da esquerda radical tão moderada a propender para o
próprio abandono da palavra comunista e à revisão do próprio símbolo. Aquilo
que depois resta da oposição no interior da Rifundazione tem, como vimos, uma
representação exígua, é uma esquerda comunista em recíproca discórdia,
fragmentada, desorientada, débil, e precisamente por isso mais aceitável para
os poderes de comando. Esta arrumação não é só italiana mas europeia e chegou a
Itália com um certo atraso e com características próprias, mas fica também
sempre um versão da mesma arrumação.

A crise da esquerda que
queira manter uma hipótese de transformação é, penso, crise de identidade. E a
crise de identidade da esquerda acompanha e em parte determina a crise da
democracia e da política compreendida como participação mas também só como pura
representação.

O verdadeiro socialismo está
nos comportamentos. Poderíamos dizer que não há outro socialismo do que o dos
comportamentos. No fundo de cada escolha de esquerda há uma motivação moral,
uma necessidade de justiça e de liberdade cujo instrumento é a igualdade. Uma
necessidade que vem de uma longa história de cultura. Uma força de esquerda
constrói-se sobre um programa político, mas este tem atrás de si um raciocínio
sobre a sociedade, sobre o Estado, sobre a pessoa humana. Um raciocínio que é
um convencimento profundo e não um slogan repetido sobre laicidade, paz,
primado social do trabalho, instrução e saúde pública, bens comuns, questão
moral. Uma política quase toda no masculino – também à esquerda – muitas vezes
não sabe
sequer que é uma reacção contra a única revolução, a feminina, que foi
alcançada por via da cultura, e não por objectivos. As dispersões e a
desorientação da esquerda perante temas que são fundantes/estruturantes para o
ser de esquerda e, por isso, o discurso desmentido pelos comportamentos gera a
desvalorização de qualquer tarefa . Em muitas partes de Itália já não existe
esquerda também por estas razões. É necessário obedecer a regras precisas e
severas senão, não se formam “quadros” eficientes. É preciso saber se conta
mais estudar, saber, organizar ou arranjar clientela. Gramsci queria dirigentes
que exercessem o seu papel sabendo que a divisão dirigente-dirigido não deveria
aí existir. Diz-se que é melhor o partido dos eleitos porque são escolhidos
pelo povo e entre este confirmados. Mas verdadeiramente é o consenso obtido nos
modos mais diferentes que garante a capacidade? A reforma da política e dos
partidos passa também através de uma redefinição do papel da política: para
esta cabe o controlo e a direcção, não a gestão. A crise da democracia – que
tem origem profunda na separação entre instituições e povo e movimentos – tem
também na confusão entre política e gestão de negócios uma sua causa profunda.

Roma 16 de Setembro 2006

* Politóloga e Jornalista
italiana
Fonte: ODiário.info, – 20.10.06

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