A concentração de renda afeta diretamente nos rumos políticos do país. Por Enio Walcácer
Para se ter uma ideia da concentração de riquezas no Brasil, em um país de mais de 200 milhões de habitantes, apenas pouco mais de 208 mil pessoas (0,8% dos contribuintes) detém 30% de toda a riqueza declarada à Receita.
Com bases nestes mesmos dados do Imposto de Renda, os 50% mais pobres dos brasileiros detém apenas 2% da riqueza nacional (ou seja, mais de 100 milhões de pessoas vivem com 2% do que todo o país produz). Enquanto isso, pouco mais de 2% dos declarantes são donos de mais de 40% das riquezas em bens e direitos declarados no Brasil.
Quando se trata de desigualdade, concentração de riquezas, medida pelo ìndice Gini, o Brasil é mais desigual que países como Equador, Bolívia, Argentina, Uruguai e Peru. É certo que evoluímos em redução de desigualdade nos últimos anos. Segundo o IBGE, de 2004 à 2014 passamos do índice Gini de 0,545 para 0,490 (quanto mais perto de 1 maior a desigualdade), mas as medidas de desconcentração de renda ainda são muito tímidas, caminham a passos lentos – isso quando caminham.
A concentração de renda mostra claramente quem são os donos do poder: são aqueles que financiam a ascensão de parlamentares, verdadeiros representantes dos interesses de grupos econômicos e de setores privados. Por meio dessa grande soma, essa pequena parcela consegue decidir sobre que tipo de política econômica, trabalhista e previdênciária será feita, e a quem esta política beneficiará.
Pensemos: se o Congresso, que cria leis, é financiado por 0,21% da população, estes congressistas criam leis que beneficiem os 50% mais pobres ou os 0,21% mais ricos? A priori, pode-se pensar que seria de interesse dos congressistas agradar ao maior número de votos, mas temos que lembrar que, em nosso Brasil, há uma lógica de desinformação que faz com que grande parte da massa votante escolha seus representantes pela: religião, beleza, troca de favores pessoais, cestas básicas, força da propaganda, influência dos grupos de comunicação, etc. Ao longo do tempo no Brasil não se criou uma consciência política, pelo contrário; a repetição do mantra de que “política não se discute” cada vez mais afastou o povo dos debates políticos, fazendo dos votos um mero ritual obrigatório para a maioria, enquanto os jogos de escolha acontecem em palcos mais abastados, em uma relação promíscua entre o poder econômico e político.
Neste relação de promiscuidade temos um Congresso que, hoje, espelhando a grande maioria das casas legislativas do Brasil, representa em sua grande maioria grupos de empresários e não os estratos de nossa sociedade brasileira, permitindo que os projetos das minorias economicamente mais fortes se sobrepujem às maiorias. Exemplo disso é a “Casa do Povo” ter uma bancada empresarial de 273 parlamentares, enquanto a bancada sindical possui apenas 91. Já dá para imaginar qual será o desenrolar das questões trabalhistas.
Da mesma forma, há ruralistas, representantes de planos de saúde, e toda a sorte de representantes do poder econômico assumindo estes espaços de poder e reduzindo ainda mais a representatividade factual da população brasileira nos locais onde são criados os conjuntos legislativos que deveriam reduzir essa desigualdade. Existe um lobby histórico que faz com que hoje tenhamos um dos parlamentos menos representativos da real sociedade brasileira, e cada vez mais composto de empreiteiras, construtoras, empresários, agropecuaristas, mineradores, indústria bélica, e parentes de políticos – todos estes somam a grande maioria de deputados que farão leis, que emendarão a Constituição, que fiscalizarão o Executivo, que apreciarão a aplicação de recursos nos orçamentos anuais e, inclusive, os créditos adicionais e suas aplicações. Agora imagina todo este poder voltado para o interesse dos que já detém a maioria do poder econômico?
Fica fácil entender o porquê das reformas tributárias incidirem quase sempre sobre bens de consumo, fazendo com que a pessoa que recebe apenas um salário mínimo pague o mesmo imposto em valor absoluto de que uma pessoa que recebe 100 salários mínimos, por exemplo, e o impacto em seu orçamento seja absolutamente desigual. Isto explica também o porquê de não se tocar no tema da tributação de grandes fortunas, expresso na Constituição e nunca implementado no Brasil, ou porquê não se faz uma auditoria na dívida pública brasileira como fez, por exemplo, o Equador, que demonstrou naquele país a ilegalidade de um sem número de dívidas e gerou uma economia gigantesca, sendo a auditoria aceita por 95% dos detentores de títulos, reduzindo a dívida do país em mais de 70%.
Hoje, no Brasil (Governo Federal), o gasto em juros e amortizações da dívida soma cerca de 45% de nosso PIB. Comparativamente, gastamos com a previdência social cerca de 21%, com a saúde, aproximadamente, a 4% do PIB e na Segurança Pública cerca de 0,33% e na educação 3,73% do PIB. Podemos perceber de forma muito clara onde seria necessário fazer uma auditoria e enxugar valores para se ter uma efetiva economia no Brasil, para a realocação de recursos onde verdadeiramente interessa à maioria do povo. Contudo, o que temos notado é que todas as medidas que estão sendo propostas agora se referem à redução no orçamento das Universidades Públicas, ou seja, na educação, na saúde, na previdência, nas transferências de renda, mas nunca se toca no assunto dos juros e da amortização da dívida. Por outro lado, se fala em aumento da tributação de bens de consumo, mas nunca em tributação de grandes fortunas.
Enquanto a desigualdade do Brasil aumenta, multiplicam-se os problemas. As medidas atuais, já na interinidade deste governo, mostram um descompasso gritante com as reformas necessárias para continuar com a redução de desigualdades no Brasil e na desconcentração de riquezas. Contudo, seguindo nesta caminho inverso, o que vemos é uma retomada do ciclo de crescimento da concentração de renda no Brasil, o que redundará, como consequência clara, em um tensionamento maior decorrente das desigualdades, da precariedade da educação e da saúde, criando ondas de crescimento da violência. O crescimento da violência, em decorrência da ampliação da desigualdade, gerará, por conseguinte, a ampliação do recrudescimento penal em um sistema falido, fazendo com que surja a justificativa ideal para o governo ampliar as ferramentas de redução e relativização das liberdades individuais e ampliação da força do aparato estatal de controle repressivo, gerando uma onda reacionária no Brasil.
Esta onda reacionária que agora se mostra ainda pequena levará, inevitavelmente, a um esfacelamento do horizonte constitucional de redução de desigualdades e ampliação das liberdades, a um processo de desmonte gradual do estado de bem-estar impulsionado pelo neoliberalismo que, aqui no Brasil, significa Estado mínimo para os necessitados, e Estado máximo para os representantes do poder econômico. Os últimos, que contam com portas sempre abertas – afinal, são eles que sustentam o poder político.
Convenhamos: seja pealo lobby legalizado ou pela escancarada vinculação entre o poder econômico e o poder político, a promiscuidade do toma-lá-dá-cá nunca acabou por essas terras.
Enio Walcácer é Mestre em Prestação Jurisdicional pela Universidade Federal do Tocantins – UFT. Especialista em Ciências Criminais e em Direito Administrativo pela UFT. Graduado em Direito e Comunicação Social pela UFT.Artigo publicado originalmente em http://justificando.com/2016/08/16/a-concentracao-de-renda-afeta-diretamente-nos-rumos-politicos-do-pais/