A discricionariedade no sistema de justiça criminal. Por Afranio Silva Jardim
Os irmãos Batista da empresa JBS criaram um “terremoto” no sistema político e financeiro em nosso país. Voltaram a fazer “fortuna” na bolsa de valores e viajaram calmamente para os Estados Unidos, com autorização dos órgãos persecutórios federais.
Fala-se que eles e outros executivos de sua empresa não serão punidos pela imensa corrupção que praticaram em todo o nosso território. Parece que, no acordo de cooperação premiada (delação premiada), combinaram com o Ministério Público Federal que não seriam sequer indiciados nos necessários e costumeiros inquéritos policiais …
Tenho indagado sistematicamente: por que não são divulgados estes acordos de cooperação premiada, inclusive dos 77 executivos da Odebrecht ??? O que estão escondendo???
A pessoa jurídica JBS não fez o acordo de leniência, pois não aceitou pagar uma multa em torno de 11 bilhões de reais, ao longo de uma dezena de anos. Tranquilo: eles podem vender os frigoríficos que têm no Brasil e continuam operando nos 5 continentes. A imprensa noticiou que a empresa tem cerca de 50 destes frigoríficos só nos Estados Unidos … Já estão confortavelmente instalados em suas mansões no “império do norte” …
Destes insólitos fatos se constata que os membros do Ministério Público não têm a necessária experiência negocial que esbanjam estes empresários exitosos, exitosos porque desonestos. Quando muito, o Ministério Público Federal, através destes acordos, está “trocando seis por meia dúzia”, como diz o ditado popular. Impunidade para os empresários que, na sua grande maioria, estão em “prisão domiciliar diferenciada”, vale dizer, praticamente sem qualquer punição eficaz.
O pior de tudo isso é a “vulneração” do nosso frágil Estado de Direito e a total insegurança jurídica, pois não mais se respeita o sistema de penas previsto no Código Penal e na Lei de Execução Penal. Tenho tratado disso de forma exaustiva na minha “Coluna” do site Empório do Direito.
Procuradores da República e corruptores confessos estão fazendo acordos sobre penas inexistentes em nosso sistema jurídico e até ao arrepio deste sistema. A melhor interpretação do artigo quarto da Lei 12.850/13 não autoriza sejam derrogadas as regras cogentes do Direito Penal e da Lei de Execução Penal. Aqui não podemos aceitar o “negociado sobre o legislado”.
Note-se que a imprensa tem noticiado que estas delações premiadas estão prevendo penas sem sentença penal condenatória !!! Simulacro de penas sem inquérito ou processo penal !!! O terrível é que tudo tem sido feito com o beneplácito do Poder Judiciário, que homologa estes verdadeiros absurdos jurídicos.
Tenho sustentado que não pode a “delação premiada” estipular penas já individualizadas, penas já determinadas ou já fixadas. É da competência do juiz da condenação aplicar a sanção penal, na sua sentença de mérito. Compete ao juiz da condenação individualizar a pena, conforme dispõe a Constituição Federal. Enfim, é o Poder Judiciário quem condena e aplica as penas previstas em nosso ordenamento jurídico. Vejam os meus textos publicados no site Empório do Direito.
Volto a dizer que poder demasiado, ao invés de fortalecer, acaba fragilizando a respectiva instituição. O Estado de Direito é incompatível com este poder discricionário que o Ministério Público Federal se arvora ter. Quando tudo isso passar, quem vai sofrer as consequências destas incertezas será o Ministério Público, que vinha caminhando para uma perspectiva mais democrática.
Termino, gritando: não à justiça pactuada; não à importação de institutos processuais penais próprios do “common law”; não à importação de institutos processuais norte-americanos; não aos chamados “negócios processuais penais”; não à ampla discricionariedade no processo penal.
Afranio Silva Jardim, professor associado de Direito Processual Penal da Uerj. Mestre e Livre-Docente em Direito Processual Penal (Uerj). Procurador de Justiça (aposentado) do Ministério Público do ERJ.