A função racial da Universidade por Bruno Cava
Como já não é possível condenar as cotas sociais, os conservadores
deciciram atacar a discriminação positiva em favor dos negros.
Declaram-se republicanos e meritocratas. É como se vivessem num país
onde não houve escravidão e não é preciso enfrentar agora a
desigualdade racial
A partir de 2002, as medidas afirmativas de cotas raciais
intensificaram o debate e polarizaram o campo político de esquerda e
direita. As primeiras universidades a reservar vagas de forma
generalizada a negros e indígenas foram a Universidade Estadual do
Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade Estadual do Norte Fluminense.
Uma lei estadual fluminense, de 2001, determinou que as entidades
reservassem, no vestibular, cotas de 20% para estudantes de escolas
públicas, 20% para negros, 5% para indígenas e 5% para pessoas
portadoras de deficiência. Desde então, pelo menos 32 outras
entidades do ensino superior – como a UFRGS, a UFPE, a UEPB —
instituíram sistemática similar, seja mediante decisões
legislativas, seja por deliberações internas.
As primeiras turmas da UERJ sob o novo regime de admissão graduaram-
se no ano passado, sem registro de conflitos raciais sérios e com
aproveitamento igual às turmas anteriores. Nessa universidade, os
estudantes cotistas mantiveram um coeficiente de rendimento médio
entre 5% abaixo e 5% acima dos demais, dependendo do curso. Isto é,
não houve qualquer diferença mensurável de rendimento acadêmico
entre alunos cotistas e não-cotistas.
Certamente não houve "queda do nível". Como também não houve com os
ingressos do Programa Universidade para Todos (Prouni), que assegura
bolsas para alunos pobres em faculdades privadas. Estes foram até
melhor do que os outros, inclusive os admitidos no Prouni pelo
critério racial. Se, de um lado, a política afirmativa não é um
sucesso absoluto – principalmente nos cursos de menor procura, em
que sobram vagas -, por outro "mudou a cara" da universidade,
trazendo um colorido todo-especial de novas demandas, valores,
idéias, estilos.
Apesar dos bons resultados e de 65% dos brasileiros apoiarem as
cotas raciais (pesquisa Datafolha de 2006), a resposta reacionária a
elas persiste. Por envolverem critério racial, as cotas vêm
recebendo bombardeio mais feroz que as demais políticas de inclusão,
tais como as vagas para estudantes de escolas públicas. Para muitos,
o problema é a cor da cota. Na UFRGS, alguns gaúchos "indignados"
picharam em letras garrafais, à frente do campus: "Negro só se for
na cozinha do HU". Outros adversários, mais sofisticados, publicam
livros extensos e "imparciais", para provar que a cota racial é
ruim, porque não somos racistas.
Muitos mantêm uma atitude tipicamente brasileira: ser contrário em
silêncio e guardar o racismo para si, negando-o, menosprezando a
história do Brasil. Mas nem sempre o racismo é tão "cordial", como
se viu no episódio dos estudantes africanos na UnB, ocasião em que
se ateou fogo às suas portas, bem ao estilo Ku-klux-klan.
Que o Brasil seja um país racista é de uma evidência de doer aos
olhos. Historicamente racista, economicamente racista, esteticamente
racista, culturalmente racista. A democracia racial é um mito que
serve à perpetuação das desigualdades socioeconômicas com modulação
racial. A tese do povo brasileiro como miscigenação do branco, do
indígena e do negro – o mestiço como o substrato da brasilidade –
camufla a nossa história, que é a da explícita hegemonia do branco.
A elite branca predomina nos cargos públicos de alto escalão, nas
chefias empresariais e na direção da grande imprensa.
Negar a existência do racismo no Brasil é esquecer a desmesurada
escravidão, que forjou os primeiros séculos desta sociedade. Como
se, da abolição aos dias de hoje, aquela multidão de escravos
tivesse sido incluída na partilha da produção de bens sociais. Não.
A travessia formal do escravo ao negro liberto deu-se sem política
de inclusão digna de nota. Manteve-se a posição explorada,
subalterna, marginal, sob ininterrupta disciplina policial e
preconceito racial. Da capoeira ao samba, do hip hop ao funk. No
racismo, trata-se de reconhecer a ligação concreta entre a situação
desvantajosa do escravo e a situação desvantajosa do negro no
presente.
Argüir que cientificamente não há como definir a raça é tão estúpido
quanto afirmar que o negro não existe. A raça não é um conceito
biológico. A raça envolve noções culturais, econômicas e políticas.
O negro existe. É o resultado de um processo de exploração
atravessado por migrações forçadas, alienação do trabalho e
repressão violenta, que não cessou até hoje e no qual a cor – seja
ela "parda", "mulata", "escura", "morena" – é somente uma
manifestação.
A cota puramente econômica não é suficiente. Mesmo que, em
princípio, o branco-pobre tenha as mesmas chances do negro-pobre,
eles não têm as mesmas chances na sociedade
A ação afirmativa não fomenta o racismo, porém o reconhece para daí
se fazer justiça frente a seus efeitos. Fingir que as diferenças não
existem não as faz desaparecer como por mágica. O caso não é
eliminar as diferenças raciais, mas não permitir que elas sigam
refletindo brutais desigualdades. Se reconhecer a obviedade de que
existam raças é racismo, então é necessário por assim dizer
ser "racista", pois só assim se poderá viabilizar a discriminação
positiva.
Alegar que a cota racial é incompatível com a república, por causa
da cidadania formal, é viver num mundo abstrato de conto-de-fadas,
que favorece a perpetuação das disparidades e da injustiça. A
igualdade formal achata as diferenças materiais que são a própria
substância da justiça. Tratar os desiguais na medida da
desigualdade… Absolutizar a meritocracia é consagrar o egoísmo e o
individualismo. Ademais, a meritocracia sozinha é injusta, porque o
concurso é uma fotografia que não capta a estrutura socioeconômica e
familiar, que também determina o preparo dos concursandos. O
concurso não pode ser um critério exclusivo.
A cota puramente econômica não é suficiente. Mesmo que, em
princípio, o branco-pobre tenha as mesmas chances do negro-pobre no
vestibular, eles não têm as mesmas chances na sociedade como um
todo. A Universidade não é um microcosmo nem uma torre de marfim,
como a enxergam muitos intelectuais. A universidade conecta-se à
sociedade. A sociedade justa depende do ensino justo, que por isso
mesmo é o melhor ensino.
Defender a melhoria genérica do ensino fundamental e médio como
medida "menos gravosa" às quotas significa mandar a ação afirmativa
às calendas gregas, perpetuando a ditadura racial. Uma coisa é
diferente da outra. As duas políticas não se excluem, elas se
complementam. Passaram-se muitos anos de desídia e hipocrisia nessa
questão. A exigência é realizar a democracia racial – no concreto
das diferenças – não daqui a cem, vinte ou dez anos, mas aqui e
agora. Já!
A militância dos movimentos negros é a melhor maneira de fazer
frente à opressão racial. Através da resistência, manifesta seu
projeto de justiça e se define como sujeito político. Mais do que em
um catálogo de diferenças empíricas, é na própria luta comum que se
assenta a singularidade da raça. Expressa-a perante uma sociedade
que – da esquerda à direita, a juventude inclusive – não lhe endossa
e, quando o faz, resume-se à cômoda indignação.
Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique