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A hora é de construção da saída para o país. Por Juca Ferreira

6 - 8 minutos de leituraModo Leitura
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A gravidade da crise política brasileira e a amplitude de seus componentes estão produzindo uma instabilidade inédita e preocupante, que ameaça o futuro do Brasil.

 

O golpe se desdobrou e vem se aprofundando nas últimas semanas, violando códigos político-institucionais e destruindo quase que completamente o pacto que permitiu o fim da ditadura.

O golpe está conseguindo por fim à conjuntura de construção da nossa democracia, que sucedeu a ditadura, quando a sociedade brasileira passou a vivenciar e construir os marcos iniciais de um país democrático.

Os sucessivos escândalos de corrupção; a permanente campanha midiática manipulatória, impatriótica, que joga todos e toda atividade política na vala comum do descrédito; a desconstrução de líderes populares, como o presidente Lula; o desastre econômico e social, que vem se aprofundando após o afastamento da presidenta legalmente eleita, substituída pelo governo golpista de Temer e ocupação dos poderes da República por quadrilhas e grupos de interesses têm produzido, em nosso país, uma exacerbação do desencanto contemporâneo com a democracia, aprofundando a crise da democracia brasileira e de suas instituições.

Os golpistas parecem ter um plano para fazer a roda da história girar para o passado. Avançam sobre nossa soberania e os interesses nacionais, sobre os direitos sociais dos trabalhadores, das mulheres, da juventude, dos povos indígenas, dos negros, enfim, de todo o povo brasileiro. Não querem deixar pedra sobre pedra, nenhum vestígio do que a duras penas os brasileiros e brasileiras vinham construindo.

Agora estão concentrados em destruir a liberdade de expressão, procurando censurar qualquer manifestação artística e cultural crítica. Também estão determinados em extirpar da vida política os partidos que têm compromisso com a justiça social.

Estão tentando destruir os acordos tácitos da vida social e cultural brasileira, alguns históricos e já enraizados, penetrando de forma insidiosa em toda a esfera pública, obstruindo o debate e a negociação política em todos os campos da vida nacional. O ódio, a irracionalidade, a burrice, a boçalidade e a intolerância jogam um papel central nessa estratégia golpista.

O Brasil corre um perigo que já atinge muitas sociedades do mundo: a perda da mínima possibilidade de coesão social e da própria existência como nação.

Uma aliança de forças reacionárias internas associadas como subalternos do capital financeiro internacional e das grandes potências capitalistas está produzindo uma inviabilização da nossa soberania e da nossa existência como sociedade.

Não aceitam resultados eleitorais adversos, minando a possibilidade da vida democrática. Não aceitam a convivência com os que pensam diferente. Não suportam a ampla liberdade de expressão e o livre debate de idéias. Não aceitam a crítica da arte e da cultura. Não aceitam a extensão de direitos sociais para todos os segmentos que compõem o povo brasileiro.

Hoje, o território de exercício da democracia, onde se pode construir saídas para as crises que nos afetam, está obstruído pelas forças do atraso.

No Congresso, com as bancadas da bala, da Bíblia e do boi, associadas a outros grupos de interesses e quadrilhas políticas, estão impondo ao país uma pauta estreita, retrógrada, contrária aos interesses do país e da sociedade, o que está nos levando para a beira do abismo.

Os grupos de interesses, patrocinadores do golpe, querem exercer, na sua plenitude, o colonialismo do Século 21 comandado, não por nações invasoras como 500 anos atrás, mas pelo capital global e suas armas modernas: a ocupação de corações e mentes. Essa é a verdadeira e mais perigosa batalha que, nós brasileiros, devemos enfrentar.

Articulada com interesses internacionais, como sempre foi, a direita vem desempenhando seu papel na estratégia de neocolonização do Brasil e de destruição da nossa democracia. Primeiro, operando o golpe através das instituições do Estado; depois do golpe instalado, as reformas de enfraquecimento do Estado e de sua capacidade de distribuir riquezas e promover justiça social. Depois, operando para enfraquecer a cidadania, por meio da perseguição a trabalhadores, indígenas, quilombolas e a todos aqueles que se interponham ao avanço do capital, seja defendendo o meio ambiente, a cultura ou os direitos humanos.

Outra tática é disseminar o ódio, o medo e a discórdia através da escalada da violência. Mas também adotando expedientes reacionários como o fechamento de exposições de arte e o rebaixamento da cultura, a tentativa de redução da maioridade penal, a discriminação de homossexuais, a criminalização das religiões de matriz africana, o genocídio indígena e dos jovens negros das periferias das nossas cidades e outras ameaças ao processo civilizatório do Brasil.

Vivemos um ambiente conflagrado, produzido de forma artificial para solapar a soberania nacional, atacar os direitos sociais e o que a sociedade brasileira construiu como referência de vida democrática.

Delineado o contexto das crises que afetam nosso país, chego à questão que me trouxe a esta reflexão. Qual é o lugar da esquerda e das forças democráticas nesse cenário? Que papel devemos desempenhar neste momento crucial para a democracia brasileira? A sociedade, atônita e confusa, clama por alternativas de superação da crise generalizada e por propostas que indiquem um projeto de futuro para o país.

A crise profunda e a rápida degradação das relações sociais produzem urgências que nos obrigam a superar, o quanto antes, a perplexidade, a dispersão e o auto isolamento.

Não sem motivo, muitos de nós se abrigaram no conforto das bolhas reais e virtuais onde somos acolhidos e temos a aceitação de iguais. Outros apenas resistem e lutam com todas as forças para não sucumbir à artilharia diária perpetrada por setores do judiciário e da direita social, sincronizados pela mídia. De fato, tudo é contra, tudo é hostil, mas precisamos ir além da resistência ao golpe.

A esquerda e os democratas precisam reunir todas as suas forças e suas muitas inteligências para dar a volta por cima, mostrando à sociedade brasileira que temos saídas e ainda é possível recuperar o sonho de um Brasil-Nação, justo e solidário, democrático e sustentável.

A direita, encantada com as teses neoliberais de estado-mínimo, de cada qual por si, com sua doutrina baseada na competição e no individualismo, aceita a subalternidade do país. É incapaz de conduzir um amplo debate, uma concertação nacional que considere os interesses de todos. Cabe aos que lutam pelo restabelecimento do processo democrático reabrir os canais de diálogo para possibilitar a construção dessa alternativa democrática para o país.

A primeira coisa a fazer é religar o pensamento dos que lutam contra o golpe com as demandas, necessidades e preocupações da maioria dos brasileiros.

Não é difícil entender porque grandes parcelas da população, setores das camadas médias e especialmente aquelas que vivem debaixo de tiro, porrada e bomba, em condições sociais infra-humanas, têm sido atraídas pelo discurso hiper reacionário de religiosos sem escrúpulos e de uma direita quase facista e predatória.

Lamentar e denunciar a manipulação desonesta em nada muda a ordem das coisas. Já vimos esse filme antes. Cair nas provocações de agitadores sempre prontos a invocar as forças de repressão, muito menos. Cabe aos que lutam pelo restabelecimento do processo democrático compreender a complexidade do Brasil de hoje para conseguir propor alternativas e indicar soluções objetivas que possam disputar efetivamente a atenção e angariar a confiança dos cidadãos e cidadãs.

Esse exercício vai exigir uma grande capacidade de escuta, habilidade para conciliar interesses políticos divergentes, humildade para ceder em favor da maioria, mesmo naquelas questões mais caras ao pensamento de esquerda e dos vários segmentos políticos democráticos.

Precisamos ter criatividade para argumentar, ponderar, discutir e negociar sobre uma infinidade de problemas e questões hoje em disputa na sociedade.

Em sua caravana pelo Nordeste, o presidente Lula mostrou a vitalidade e o potencial do contato genuíno com a base social para dialogar sobre seus problemas cotidianos, seus direitos e suas necessidades imediatas.

O caminho está dado. É nesse percurso crítico de mobilização e organização, de grandes embates, muitas transformações e de muitos retrocessos, que a esquerda e demais setores democráticos vão se reencontrar, se reinventar, e se apresentar ao Brasil como a alternativa mais viável, mais promissora, mais generosa e mais capacitada para propor e construir um projeto democrático de nação, humano, justo e sustentável.

Juca Ferreira é Sociólogo, foi Ministro da Cultura nas gestões Lula e Dilma. Atualmente é Secretário de Cultura de Belo Horizonte, MG

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