A lógica de um linchamento. Por Marcelo Veras
Um linchamento não é feito com justiça, tampouco com argumentação ou tempo para compreensão. O linchamento é um ato mortífero desencadeado quando alguém é manipulado o suficiente para deixar-se hipnotisar e agir cegamento pelo controle do mestre.
Aqui não falamos de um mestre que transmite sabedoria, mas do mestre que consegue mobilizar nossa pulsão de morte e agenciá-la de modo a seguir apenas os seus desígnios. A grande descoberta dos últimos anos é que a rede social é perfeita para hipnotizar asseclas e levá-los à ação.
Quando uma nação chega nesse patamar é muito difícil recuar, estamos em pleno território da crítica da razão surda, falamos aos muros, como dizia Lacan. O linchamento é a estratégia de quem cede sua subjetividade em favor de uma voz que ordena: mate, suprima, extermine esse outro que me perturba.
Essa semana tivemos dois exemplos de linchamento explícito. Duvido que mais do que umas 20 mil pessoas conheçam ou tenham lido a filósofa Judith Butler no Brasil. Nosso país é inculto, Butler é uma filósofa sofisticada e perturbadora, mesmo que em vários momentos eu mesmo tenha questionado seus textos. Agradeço sua obra por me por a pensar. Como então mais de 100 mil pessoas a repudiam em uma petição para cancelamento de sua palestra no SESC? Quando se faz uma petição sem conhecimento de causa, estamos na era do linchamento. É quando aquele que apedreja não se deu conta que ele mesmo foi reduzido a uma pedra.
O FIAC, Festival Internacional de Artes Cênicas, é um dos eventos mais interessantes na Bahia. Quando fui diretor da Fundação da UFBA tive a felicidade de poder apoiar esse evento. Lembro do trabalho insano de Nehle Franke e Ricardo Libório para trazer o teatro do mundo para as cenas baianas. Eram situações louquíssimas, mil coisas davam errado e exigiam um verdadeiro contorcionismo para avançar. E ainda assim o festival era um sucesso. Após São Paulo, o FIAC foi a nova vítima de um linchamento, “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” é uma peça que desconheço, mas tenho certeza que vetar sua apresentação segue a lógica do linchamento. Um Jesus Trans, como isso ofende! Jesus teria que ser um macho alfa? Prefiro-o sensível como uma mulher. Fiquei feliz e agradeço o ICBA por ter permitido sua encenação.
Jesus nunca mandou jogar pedras, hoje em nome de Jesus se apedreja. É nesse ponto que é preciso alertar que a religião não tem nada a ver com isso, ela tem sido usada para manipulações muito menos nobres.
Marcelo Veras é Psicanalista