Aldeia Nagô
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A luta pelo direito. POr Plinio de Arruda Sampaio

4 - 5 minutos de leituraModo Leitura

Ante tal realidade, pergunta-se: o que devem fazer esses milhões de pessoas? Ou: o que o leitor faria se estivesse na situação dessas famílias?


A Constituição de 1988 outorgou aos municípios
brasileiros faculdades suficientes para uma intervenção eficaz no problema da
falta de moradias.
Admitindo implicitamente que a causa principal é a
especulação imobiliária, o texto constitucional outorgou quatro faculdades
específicas aos municípios a fim de aparelhá-los para intervir no mercado
imobiliário urbano: facultou o parcelamento compulsório dos terrenos ociosos com
pagamento das indenizações mediante títulos da dívida pública resgatáveis em dez
anos; permitiu a construção compulsória em terreno particular; instituiu o
usucapião de cinco anos em favor da família que ocupar área urbana de até 250
metros2; e estabeleceu a progressividade do IPTU. Obviamente essas regras seriam
desnecessárias se a especulação não campeasse solta.
Mas elas não adiantaram
grande coisa. Prefeitos e vereadores não têm coragem de aplicá-la; a legislação
ordinária regulamentadora do preceito contribuiu mais para dificultar sua
aplicação do que para torná-la expedita; e o Judiciário, sem dizer, se
encarregou de revogá-la, caso a caso, sempre que sua aplicação ferisse o
interesse do capital imobiliário.
Os governos preferem jogar dinheiro na
construção de casas, medida que sabem não resolver o problema. Mas, a crer nos
multicoloridos "folders", sempre repletos de fotografias dos prédios construídos
e de beneficiários agradecidos e benfeitores generosos, o problema já está
resolvido.
A realidade, porém, é muito outra: 2,3 milhões de famílias moram
em casas inadequadas, o que inclui habitações em situação de risco, sem
instalações sanitárias, sem nenhum tipo de infra-estrutura urbana. Somando todos
os programas de moradia e ajustando o ritmo da construção ao ritmo do
crescimento das cidades, o problema não será resolvido em menos de 20 anos.
Enquanto isso, estatísticas oficiais registram 6,7 milhões de domicílios vazios
no Brasil -clara evidência de que a solução não está apenas nos programas de
construção de casas populares.
Sempre que a falta de moradia ocasiona alguma
catástrofe -o que, de resto, ocorre com muita freqüência-, a mídia faz piedosas
reportagens sobre o assunto, evitando cuidadosamente abordar o cerne do
problema: a especulação imobiliária e a regressividade da tributação da terra
urbana.
Ante essa realidade, pergunta-se: o que devem fazer esses milhões de
pessoas? Ou: o que o leitor faria se estivesse na situação dessas famílias?

A maioria dos mal-alojados prefere esperar que um governante de "bom
coração" ou algum político interessado no seu voto resolva o problema.

Porém, há, no meio dessa massa, uma pequena parcela que, conscientizada por
grupos políticos sérios, decidiu agir: organizou-se em um movimento e passou a
fazer ocupações de terrenos vazios. Essas entidades estão fazendo manifestações
de protesto em nove Estados do país.
A cidadania precisa apoiá-las, quando
mais não seja, defendendo a legitimidade desses protestos em seus círculos de
convivência. Só isso ajudaria muito, pois a opinião pública favorável inibe a
repressão.
A ocupação de terras é forma legítima de afirmação de direitos
numa sociedade que não estabelece mecanismos civilizados para que as pessoas
possam ver tais direitos assegurados e na qual nem o governo nem a sociedade se
importam com a sorte dos sem-teto.
É porque tomaram consciência disso que
esses sem-teto se sujeitam às bombas de efeito moral, ao gás lacrimogêneo, às
balas de borracha, à vida (sem água e sem instalações sanitárias) numa barraca
de plástico.
Obviamente, entre fazer alguma coisa para ajudar a resolver o
problema e não fazer nada, a atitude mais cômoda é inegavelmente a segunda, pois
a polícia acabará retirando os ocupantes e, portanto, a "ordem" voltará a
prevalecer.
Há nessa atitude, contudo, um terrível equívoco: ao "tirar" os
ocupantes, a polícia não faz senão gerar mais ocupantes. E vai continuar
"tirando" e "gerando" até o dia em que não conseguir mais "tirar" ninguém.

Aí…


PLINIO DE ARRUDA SAMPAIO , 77, advogado, é presidente da
Abra (Associação Brasileira de Reforma Agrária) e diretor do "Correio da
Cidadania". Foi deputado federal pelo PT-SP (1985-91) e consultor da FAO
(Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação).

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