A política no banco dos réus por Alexandre Mendes
Judiciário contra as políticas sociais, como se fossem "eleitoreiras". O
importante debate teórico em torno do tema não pode ocultar que, hoje, é a
potência dos novos sujeitos políticos (multidão) que produz os valores, direitos
e afetos.
Recentemente, na inauguração de um viaduto em Aracaju, o
presidente Lula trouxe à tona o debate sobre a independência e harmonia dos
poderes republicanos, insurgindo-se contra o que viu como uma tentativa de
interferência, por membros do Poder Judiciário, nos programas sociais de seu
governo.
Mesmo sem citar nomes, o recado foi claramente dirigido ao
ministro Marco Aurélio Mello, que inúmeras vezes qualificou as políticas sociais
do governo federal de “eleitoreiras” ou “assistencialistas”, ameaçando suspender
vários programas do Executivo no Tribunal Superior Eleitoral, com suposto
fundamento na Lei 9504/97. O debate, mais que uma simples rusga entre duas
autoridades, revela os limites, os riscos e o potencial conservador de uma visão
que aposta na judicialização extrema da política, supostamente como forma de
acelerar a democratização do Brasil.
Segundo Boaventura de Sousa Santos [1], há
judicialização da política sempre que os tribunais afetam de modo significativo
as condições da ação política. O termo remontaria às linhas formuladas por
C.N.Tate e Vanlinder (1995) para a pesquisa empírica sobre os efeitos da
expansão do Poder Judiciário no processo decisório das democracias
contemporâneas. No Brasil, diversos autores apontam a Constituição de 1988 como
marco para a possibilidade de abertura do Judiciário às novas demandas sociais e
políticas, destacando a possibilidade de intervenção judiciária nas condutas da
administração pública, comissivas ou omissas.
Para longe da trama conceitual e/ou normativa que envolve o tema,
uma compreensão política do fenômeno passa pelo reconhecimento
do esforço de mobilização político-social que o Brasil vive, desde a transição
democrática pós-ditadura, com ênfase na eleição de Lula O que está em jogo é a
própria concepção social e política de democracia, e sua compreensão como um
processo de luta contínua em direção à liberdade e à distribuição dos bens e
riquezas produzidas.
Contudo, em geral, a intervenção do Judiciário na política tem
sido analisada somente em termos abstratos, prendendo-se a comentários
“regulatórios” sobre o antigo ideal polibiano [2] de equilíbrio e independência entre os poderes
constituídos. De um lado, temos as críticas funcionalistas, que identificam um
perigoso rompimento nas divisões funcionais da República, o que deturparia o
harmônico espaço de mediação entre os poderes (sub-sistemas). De outro, a
crítica liberal-privatista, que não abre mão de uma estrutura rígida de
separação dos poderes, somada a uma limitada concepção de direitos fundamentais
e de cidadania plena (Maciel&Koener, 2002).
Muito além dos “modelos” que limitam a democracia à esfera da
representação institucional, é preciso tomá-la em seu caráter absoluto, como
expressão integral da multidão colorida que a compõe
No campo favorável à judicialização, identifica-se uma expansão do
Judiciário como contrapeso necessário ao aumento das funções do Legislativo e do
Executivo, requisitando uma maior “criatividade dos juízes” na aplicação do
direito (Cappelletti, 1993). De forma parecida, Luiz Werneck Vianna constata que
o constitucionalismo moderno promove “a invasão da política pelo direito,
ampliando-se a esfera da legalidade: o Judiciário, por de meio do controle de
constitucionalidade das leis, (…) passa a fazer parte, ao lado do legislativo,
de sua formulação” (Werneck, 1997). Estaríamos assistindo, segundo Werneck, à
construção de uma “democracia jurisdicional”, em que os tribunais tornam-se
atores centrais da vida política. Um outro ponto do elogio à jurisdicionalização
da política enfatiza a desneutralização do Judiciário e a mitigação da separação
dos poderes. O Judiciário torna-se um poder ativo na defesa dos direitos e
proteção das minorias sociais (Dworkin, 1999).
Seja na crítica ou no elogio, ainda sentimos falta de uma
abordagem que compreenda o sentido político da judicialização
em suas bases materiais, concretas e temporais. Muito além dos “modelos” que
limitam a democracia à esfera da representação institucional — pretendendo ora
reformá-la, ora conserva-la em seus fundamentos — é preciso tomá-la em seu
caráter absoluto, como expressão integral da multidão colorida que a compõe.
Portanto, dialogando com Antonio Negri, poderíamos dizer que o enigma da
democracia não reside nas variadas matizes da representação ou da mediação
institucional, mas no próprio conceito de expressão, “aquilo
que Espinosa chamaria de paixão constituinte da multitudo”.
(Negri, 1992, p. 422).
Ou seja, é necessário fugir das armadilhas do mecanismo
representativo-institucional (e suas infindáveis e minuciosas discussões sobre
as relações entre os poderes constituídos) para lançarmos luz à expressão de um
poder constituinte que é sempre inovador, criativo, vivo e potente. É a potência
dos novos sujeitos políticos (multidão) que produz, nas democracias
contemporâneas, os valores, os afetos e os direitos, numa contínua
interpenetração entre o social e político. O poder constituinte é justamente “a
subjetividade, social e política, desta radical constituição do mundo da vida”
(Negri, 1992, p. 451).
Podemos então, retornando ao início do texto, situar os embates
entre o presidente Lula e o ministro Marco Aurélio nesse campo — temporal,
material e constituinte –- da radicalização democrática brasileira. É aí que
aparece, com clareza, o caráter conservador das observações do magistrado. Ao
questionar sistematicamente as políticas sociais existentes e seu potencial de
ampliação, enquadrando-as equivocadamente nas vedações da lei eleitoral, o
ministro tenta atingir o coração de uma dinâmica de distribuição de renda que
não só melhora diretamente a vida de milhões de pessoas, como também constitui o
primeiro esforço político empreendido no sentido de uma renda mínima
universal.
Os conservadores escandalizam-se: o bolsa-família, criado somente
para “matar a fome”, é utilizado na compra de geladeira, microondas, máquina de
lavar, fogão, liquidificador, DVD…
Hoje, temos o menor nível de pobreza na população desde 1987
(26,9%), ano em que teve início o estudo desse problema social pelo Instituto de
Estudos do Trabalho e da Sociedade. No ano de 2006, houve, em números absolutos,
queda de 10,6% no contingente de pobres no país — de 54,884 milhões de pessoas
em 2005 para 49,043 milhões. Ou seja, em um ano 5,841 milhões de brasileiros
afastaram-se da linha da pobreza. Segundo o estudo, o número de indigentes que
vivem no país também baixou de 6,8% da população, em 2005, para 5,7%, em 2006.
Em todo o Brasil, o número de miseráveis caiu de 12,218 milhões para 10,363
milhões. Em 2007, pôde-se concluir que 20 milhões de pessoais haviam migrado das
chamadas classes D e E para a classe C.
O aumento na renda dos brasileiros mais pobres, como conseqüência
das políticas sociais adotadas, foi comentado também pelo conservador
articulista do jornal O Globo, Ali Kamel, que publicou artigo
intitulado “Bolsa família agora compra eletrodoméstico”, em 3 de março. No
texto, Kamel lamenta que o programa, inicialmente criado para somente “matar a
fome”, esteja hoje sendo utilizado para compra de geladeira, microondas, máquina
de lavar, fogão, liquidificador, forno elétrico, televisão e DVD, segundo dados
do IBGE. No mesmo jornal, o colunista Merval Pereira cunhou a expressão “vezo
autoritário” para se referir ao comentário de Lula sobre o citado ministro do
STF, emendando que “o fenômeno da judicialização ou tribunalização da política é
uma marca de nossos tempos” [3].
Ambos os jornalistas — e o campo político que reage às políticas
sociais atuais — desenham cotidianamente, ensaiando várias direções, os
contornos de uma estratégia de esvaziamento do recente aprofundamento
democrático. É possível concluir que há uma forte pressão (e expectativa) para
que setores do Judiciário realizem uma inflexão no sentido do campo conservador.
Qualificar as políticas sociais como “eleitoreiras” é premissa fundamental para
o giro à direita. Judicialização e moralização do processo de radicalização
democrática, vis-à-vis a uma desregulamentação e desjudicialização da mídia e de
suas responsabilidades legais [4].
No mesmo passo, assim o acesso à renda através da ampliação das
políticas de transferência direta enfrenta dificuldades no processo de
judicialização, o mesmo ocorre com a ampliação do acesso à educação superior
pelas políticas de afirmação (cotas para negros, índios, estudantes do ensino
público etc.). No dia 10 de março desse ano, O Globo novamente
dá ênfase às controvérsias jurídicas sobre o tema, destacando as ações movidas
pelos estudantes que não ingressaram no curso superior supostamente em razão das
ações afirmativas. Enquanto a polêmica persiste, o imprescindível Estatuto da
Igualdade Racial permanece longe de aprovação num Congresso “amarrado” por CPIs
midiáticas.
No contexto de judicialização, é compreensível que a crise do
cartão corporativo vire algo mais relevante, para a mídia que a aprovação do
Estatuto da Igualdade Racial
Boaventura apelidou de judicialização de “baixa intensidade” a
tendência à multiplicação das investigações parlamentares no âmbito do Poder
Legislativo. Segundo o pesquisador português, a “lógica midiática” (Idem, 2003)
encontra nesse âmbito da judicialização mais um campo de livre atuação. O
problema é, contudo, mais grave.
O que se observa é a própria ética democrática — que pressupõe a
produção política da igualdade e da liberdade — sendo soterrada por
procedimentos tão espetaculares quanto autoritários. A moral “judicializada”
vence a ética e nos faz esquecer que a verdadeira corrupção é a corrupção da
democracia (Antonio Negri & Giuseppe Cocco, 2005), que resta dissolvida por
uma série de mecanismos de representação — entre eles a representação da
“justiça” e do “direito” na figura dos “tribunais legislativos”. Nesse contexto,
é até compreensível (mas não menos lamentável) que a crise do cartão corporativo
transforme-se em algo mais relevante que a aprovação do Estatuto da Igualdade
Racial.
O desafio, portanto, é atravessar o emparedado espaço dos poderes
constituídos e misturar-se à força constituinte e inovadora que surge das
mobilizações produtivas. Para além das diversas formas de governo e de uma
compreensão da democracia limitada aos modelos abstratos da representação
(liberalismo, funcionalismo, democracia jurisdicional etc.) é preciso perceber e
vivenciar a própria produção da radicalização democrática.
Isso explica a dificuldade encontrada pelos defensores da chamada “república
jurisdicional” em definir o poder constituinte [5]. Querem enxergar nos tribunais uma atividade que é
própria da multidão. Apostando na transcendência, logo percebem que é o tribunal
que facilmente pode voltar-se contra a potência constituinte.
O enigma da democracia não pode ser desvendado nos ruídos
permanentes da mecânica representativa, mas sim nos novos sujeitos que exigem a
universalização dos direitos e a construção de novas bases materiais e
políticas. As chamadas medidas “populistas” ou “eleitoreiras” estão conectadas
com essas mudanças e com a transformação imanente dessas bases — daí o seu
potencial radical. Antes do Poder Judiciário, é a potência, a efetividade e os
desejos dos “muitos” que decidem, na temporalidade da política, os rumos da
democracia no Brasil.
Bibliografia:
Cappelletti.M. Juízes legisladores? Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993
COCCO, G. NEGRI, A. Glob(AL): Biopoder e luta em uma
América Latina globalizada. Rio de Janeiro: Record, 2005
Dworkin. R. O Império do Direito. São Paulo:
Martins Fontes, 1999
MACIEL. D. & KOERNER. A. Sentidos da
judicialização da política: duas análises. Revista Lua Nova, 2002, n.57,
p.113-133.
NEGRI, A. O Poder Constituinte. Tradução de
Adriano Pilatti. Rio de Janeiro, DP&A: 2002
TATE, C. Neal e VALLINDER, Torbjorn. 1995. The
Global Expansion of Judicial Power. New York University Press, 1995
WERNECK L. et allii. Corpo e alma da magistratura
brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 1997
WERNECK L. A judicialização da política e das
relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999
[1] Disponível em
http://www.ces.uc.pt
[2] Políbio (203 a.C. /121 a.C) ficou conhecido por analisar uma
quarta forma de governo baseada na fusão harmônica da Monarquia representada
pelos cônsules, Aristocracia pelo Senado e a Democracia pelo Tribuno, que teria
garantido o equilíbrio político e administrativo de Roma.
[3] Ambos os artigos estão disponíveis no site http://www.arquivoetc.blogspot.com/
[4] Isso ficou claro nas “comemorações” enfáticas dos jornalões em
relação à liminar deferida pelo ministro Carlos Ayres Brito na ADPF 130,
suspendendo vários processos em que estavam sendo aplicados dispositivos da Lei
da Imprensa
[5] A incrível dificuldade de Werneck Vianna na percepção dos
avanços do governo Lula pode ser entendida como efeito dessa limitação
conceitual. Werneck, em artigo intitulado Vinte e dois anos de
governo Lula, equipara o governo atual a todos os outros anteriores. “A
questão que fica para a esquerda brasileira é tentar localizar em sua história
recente quais disparates praticou a ponto de se deixar subsumir inerme à ordem
existente”.
Artigo Publicado Originalmente no http://diplo.uol.com.br
Le Monde Diplomatique – Brasil