A Quaresma e a Equação de nós por Antonio Godi
A quaresma é um estágio temporal do
calendário litúrgico. Trata-se de 40 dias após a Terça-Feira Gorda do
Carnaval.
Iniciada pela Quarta-Feira de Cinzas, até o Domingo de Ramos. A semana
subseqüente ganhou santidade e história com base nos relatos míticos dos
martírios de Cristo. E se consagra na sexta-feira santa, Sábado de
Aleluia e no
apogeu do Domingo da Páscoa. Trata-se de mitos católicos poderosos
apontando
para datas que guardam na ponta do lápis equações misteriosas das contas
de nós
aportando na Páscoa. Numa canção publicada no último ano bissexto nesse
jornal
fiz as contas. As ações mais determinantes do colonialismo e escravismo
tiveram
a implantação de calendários como fundamentos de dominação. A lógica
temporal
litúrgica e gregoriana a reger o ritmo das vidas de todos nós com base
no
simbólico religioso e na razão numérica capitalista.
Na Bahia a aplicação da dominação
escravista através do Calendário Litúrgico cumpriu sua função colonialísta. Mas
sofreu muitas derrotas culturais na dimensão da cozinha e da festa. Quarta-feira
de-cinzas já não é o marco zero dos quarenta dias de abstinência da carne e da
alegria. Desde os Encontros dos Trios até o Camarote Andante dos Browns e das
Ivetes. Sobra um dia na quadragésima dessa conta com a gordura de uma
quarta-feira a deletar as cinzas da abstinência católica, do colonialismo e da
escravidão. No front da luta colonialista nossa munição passou pela cozinha,
festa e música. E sacrifica a cada sextas e santas tantas peixes frescos e
salgados e enlatados no tempo. Vermelhos, Robalos, Dourados, Guaricemas,
Curvinas, Xaréus e Atúns. Outros, pequenos: pititingas, sardinhas e xixaros tentando
dispersar seus cardumes camuflando-se em rochas oceânicas para não serem presas
fáceis dos grandes.
Para além da cadeia natural da
sobrevivência. Pode-se imaginar que os peixes grandes e pequenos clamam por
existir na condição de carne. A sexta-feira baiana é um dia simbolicamente
marcado pelo dendê. Lembro então de alguns heróis acadêmicos a exemplo do
iluminado Vivaldo da Costa Lima e de Ericivaldo Veiga. Implantando no cardápio
da antropologia baiana, novos ingredientes de resistência e constituição
cultural dos mistérios da afro-baianidade. Mistérios sim, para além dos mitos do
catolicismo e do eurocentrísmo gritando por contas a serem reveladas. Preparando
uma mesa mítica no cardápio dos fronts tantos do colonialismo e escravidão. A
sexta-feira ao longo dos tempos e calendários passa a ser o dia da comida
afro-baiana. O dia do sangue vermelho do dendê do orixá primacial dos caminhos
e realizações nas mesas e oferecimentos. Dias de nos vestirmos do branco de
Oxalá ofuscando o sangue vermelho do dendê. Oxalá não usa Ekodidê mas desafia
as sextas tantas com a clarividência de sua brancura e clarão.
O disco "Magia" homenageava "os
negros da Bahia". E apesar de tudo foi visto como racista pelo MNU de meu
tempo. O alvo foi a canção "Fricote", conhecida como "Nega do Cabelo Duro".
Composição de Luís Caldas e do grande Paulinho Camafeu. O curioso é que Camafeu
também compôs a música "Que Bloco é Esse?". Carro chefe do desfile inaugural do
Ilê Aiyê de 1975. Pode-se perguntar
então!? Quais os números de nossas diferenças e equações? Qual a conta que dá
conta do que somos? Relativizando lembremos que o poeta avisou que está "tudo
certo como 2 e 2 são 5".
O tropicalista visionário foi mais longe com a conta da subtração e da prova
dos noves. Lá ele cantou: "Nine out of ten" ao flanar e passear pelas alamedas
anglo-saxônicas tropeçando no reggae. Primeira citação dessa cultura
emergencial sobre nós. Arrisco que num movimento de retorno e "Transa" com os
seus ele se viu. E sacou que nas contas de subtração e afirmação. Nove fora dez
resulta num "um" misterioso a guardar a complexidade e a soma do que somos. O
poeta na sua grandeza e derrapagens tantas, "mora na filosofia". Os criadores
arriscam no acerto e no erro na busca da diversidade e sensibilidade de nós. E
nessa linha o poeta coloca a vida na relatividade de nossa humanidade
relativizada e misteriosa.
Antonio Jorge Victor dos Santos Godi