Aldeia Nagô
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A síndrome de Canudos e o udenismo sem-vergonha por Flávio Aguiar

10 - 14 minutos de leituraModo Leitura

Muitas vezes, a esquerda da esquerda, ao falar do governo Lula,
parece repetir a síndrome de Canudos. Esse governo tem suas contradições,
lacunas, erros? Tem, nunca deixamos de apontá-los. Deveria ser abatido? Sua
continuidade (seja lá com quem for) deve ser impedida? Só uma néscia
irresponsabilidade histórica pode pensar assim. A análise é de Flávio
Aguiar.


Chamou-me a atenção um comentário do Emir em resposta aos muitos
que recebeu quando da publicação em seu blogue do relato sobre a reunião do
presidente Lula com os intelectuais em Araraquara, quando da homenagem à
professora Gilda de Mello e Sousa. Dizia o Emir que um dos presentes, recém
chegado do exterior, disse que "lá" a imagem do Brasil é muito boa; e que "aqui"
é muito ruim. Ao que ele (Emir) comentou com Luis Fernando Veríssimo que "lá"
"eles" não lêem a imprensa "daqui". Veio o pensamento a mim, que vivo "lá": é
também que "aqui", este "lá", não ressoa muito o pensamento de uma certa
esquerda "daí", do Brasil, que o desanca sem saber muito em que mundo está,
situada "acolá" de qualquer reflexão sobre o que se passa, muitas vezes, além da
soleira do próprio nariz.

Como o nariz dos que acusam a Carta Maior de
aulicismo. Ou é porque não lêem a Carta Maior, não a acompanham, ou é porque só
lêem nela o que querem, tomados que estão de uma "síndrome de Canudos", a nossa
admirável, mas malograda cidadela popular.

Uma observação prévia se
impõe. Depois de massacrada pelo Exército e polícias estaduais, a cidadela do
Belo Monte foi massacrada de novo, por muitas décadas, pela própria esquerda,
rotulada que foi de "messiânica", "beata", "alienada", etc., aceitando-se o
pré-conceito histórico dos positivistas. Recordo-me que na beleza da juventude,
que os anos não trazem mais, ouvi elogios ao personagem Antonio das Mortes (de
resto, um grande personagem) do filme "Deus e o Diabo na terra do sol", de
Glauber Rocha (de resto, um grande filme). Esses elogios falavam dele como
"necessidade histórica", porque destruía o cangaço e a comunidade de Monte
Santo, em torno do beato Sebastião, para que reluzisse a "verdadeira
consciência" do povo, isto é, aquela que nós, estudantes inflamados daqueles
verdes anos, trazíamos para a praça pública.

Tínhamos nossas razões, mas
nesse particular, havia alguma incômoda homologia com os positivistas jacobinos
que, em nome da República, saudavam o fim da "nossa Vendéia", o reduto camponês
manobrado pela aristocracia francesa contra a revolução de 89.

Mas…
voltemos ao principal que é o fio da meada que nos leva da síndrome de Canudos
ao udenismo sem-vergonha. Para tanto, tomemos a via direta de uma digressão, que
nem sempre o caminho mais curto entre dois pontos é uma linha reta, como já
demonstraram Einstein e o imortal Didi, cada um em seu campo
específico.

Onze anos atrás, em colóquio na cidade alemã de Colônia, a
propósito da celebração dos 100 anos do massacre que se abateu sobre o sertão,
apareceu um notável oficial do Exército Brasileiro, do setor de documentação.
Davi era o seu nome. Sua participação foi brilhante. Provou, por A + B, que nada
de sedição houvera na formação da cidadela do Belo Monte. Qual era o abecedário?
A estratégia militar, em duas facetas. A primeira, expôs ele, era a de que se
houvesse um princípio sedicioso na formação da cidadela, aquele sítio do Belo
Monte jamais poderia ter sido de escolha.

Por quê? Porque era ligado ao
resto da região por inúmeros caminhos. Se assim aconteceu, é porque além de ser
bom para congregar gente, o sítio o era para manter indispensáveis contatos com
a região em volta, que incluíam o comércio, o abastecimento, a circulação de
informação, enfim, tudo o que uma urbs "moderna" exige. Canudos era um caminho
de "modernização", vejam só, não de sublevação. Aqueles caminhos abertos, aliás,
serviram aos seus atacantes, os fracassados e os de sucesso. A segunda é que,
deflagrada a hostilidade, esses mesmos caminhos não foram usados para qualquer
retirada, a não ser quase no final, dias antes do cerco se fechar, por um
pequeno grupo liderado pelos comerciantes locais. O reduto de Canudos deixou-se
isolar, e por isso foi abatido. Convenhamos, é o que muitas vezes vejo a
esquerda da esquerda exigir do governo Lula. Esse governo tem suas contradições,
lacunas, erros? Tem, nunca deixamos de apontá-los. Deveria ser abatido? Sua
continuidade (seja lá com quem for) deve ser impedida? Só uma néscia
irresponsabilidade histórica pode pensar assim.

A nossa intuição diz que
uma coisa é uma coisa, e que outra coisa outra é. Mas se pensarmos bem, uma
coisa pode ser uma e a outra também. Criticar, por exemplo, a timorata atitude
do governo Lula diante da Casa Grande (ia dizer Branca) em que o Banco Central
se transformou, conceitualmente, é uma coisa. Faze-lo indiscriminadamente, sem
atentar para que lado vai a crítica, qual é a proposta alternativa, é abrir
caminho para tucanos e demos, pois cria aquela atmosfera do "é tudo a mesma
coisa".

Olhemos ao redor, para o vasto e pequeno mundo que nos cerca. Nas
várias Europas, as poucas esquerdas estão na UTI da história. Os partidos
social-democratas e os socialistas se renderam, duas décadas atrás, às balizas
conservadoras do Consenso de Washington, a ponto de perderem a própria
identidade (como aponta artigo recente de José Luis Fiori) e se tornarem
apêndices das políticas conservadoras, quando não pontas-de-lança. Mas não foram
apenas "eles" que se renderam. Houve como que um torpor generalizado, de
corações e mentes, que engolfou-os e engolfou-as nessa verdadeira "Bolha
Assassina"(nome de um filme famoso, com Steve McQueen, para quem não sabe ou
lembra) em que se transformou a necessidade das "reformas" depois do desabamento
do mundo socialista.

Este, é bom lembrar, não foi derrotado de fora para
dentro; não houve ocupação militar, como na Comuna de Paris. Ele foi derrotado
de dentro para fora, derrotou-se a si mesmo. Aí há algo em que pensar, para além
dos aviões de carreira que nos transportam ao cômodo, mas inútil, mundo das
certezas imutáveis.

Agora, não mais que de repente, as antigas e as novas
esquerdas ensaiam alguma recuperação, ainda em nível existencial. A candidatura
de Royal na França, assim como o surgimento do novo partido Die Linke (A
Esquerda) e a timidíssima inflexão ao centro do SPD na Alemanha são sinais
desses organismos que, depois de longo estado de coma, começam a dar sinais de
saírem, quem sabe, da hibernação.

No Leste europeu os políticos de
prestígio pertencem à direita ou à centro-direita, assim como na Suíça e na
Inglaterra. A Rússia está tomada por um governo mais interessante do que ao
tempo do Yeltsin, mas de espírito czarista redivivo. A Espanha de Zapatero é
mais interessante do que a de Aznar, mas assim mesmo não é um modelo de
vanguarda. Da Itália de Berlusconi e de Bento XVI nem é bom falar, para não
mergulharmos logo no inferno astral. A China transformou-se numa potência
capitalista e neo-imperialista na África, sobretudo, onde desembarca capitais e
mão de obra, numa ocupação que lembra os tempos coloniais na América Latina. Na
África aos tempos heróicos das lutas anti-coloniais se sucedeu um
(des)integrar-se na nova ordem mundial capitalista. A África do Sul resiste um
tanto, mas ainda assim seu esforço mais é por integrar-se de modo mais coerente
que seus vizinhos a essa nova ordem. A Índia moveu-se, é verdade: de um governo
de direita passou para um de centro-direita, o que, sem dúvida, é melhor, mas
não nos desperta o animus revolucionandi, ao contrário, o
reflexionandi. O Japão lembra o dito sobre Minas: está onde sempre
esteve. Para a Palestina nem é bom olhar, com a confusão ideológica em todos os
campos, e no mundo árabe e próximo ao redor campeiam fantoches norte-americanos,
líderes que são mais problemas do que soluções, como no Irã, e ex-criações da
CIA, como os talebãs e Osama Bin Laden, ou o que dele restar.

E os
Estados Unidos? Debatem-se entre a neo-direita de McCain e a
neo-ainda-não-sabemos-o-quê de Obama. Tudo bem: simbolicamente, Obama é um
acontecimento saudável. Mas o que de mais substancioso trouxe até agora foi a
promessa de criar um sistema de saúde de espírito público nos Estados Unidos,
algo assim como o SUS que já existe no Brasil (e é muito avançado, diga-se de
passagem) em lugar da situação caótica e privatista que hoje campeia do Rio
Bravo aos Grandes Lagos, do Rio Hudson à Golden Gate. Enquanto isso, numa tirada
demagógico-populista Bush promete encher a costa norte-americana do Atlântico
com plataformas submarinas para baratear já (!) o preço do petróleo e o
candidato republicano diz que vai inundar o oeste do país com 32 novas usinas
nucleares! (A propósito: não ouvi nenhuma Ongue européia ou outra a demandar a
internacionalização do oeste norte-americano para discutir a instalação dessas
usinas).

Baixemos o olhar para a nossa América Latina. O México, da
gloriosa revolução de 1910, hoje é ponta de lança da direita, com o caso ainda
mais grave da Colômbia logo ao sul. Cuba se debate para não naufragar, e está à
beira de uma "segunda fase revolucionária" (ou será já a prorrogação?) que
ninguém sabe onde vai dar. No Haiti, o novo governo já teria sido varrido do
mapa pelas milícias(?) com que o governo de Aristide, cheio de boas intenções,
mas desorganizado, conviveu, não fosse a presença das tropas (infelizmente, mas
a vida tem infelicidades piores e menos piores) brasileiras. As revoluções
republicanas (ainda longe de socialistas) da Venezuela, da Bolívia, do Equador e
do Paraguai dependem da estabilidade brasileira, enquanto nestes países as
direitas torcem para a queda do governo de centro-esquerda brasileiro em 2010 e
sua substituição pelos almejados tucanos e demos. O Partido Socialista de
Bachelet se parece mais com seus congêneres europeus, embora não tenha chegado
ao desossamento por que muitos destes passaram.

Caramba, e nós queremos
que o governo Lula reinvente – só isso, e só – a esquerda o socialismo, e quem
sabe um novo socialismo de exportação… No fundo se deseja que o governo Lula
se isole, e isso num país que tem uma classe média imensa cuja cabeça política
por vezes parece ventoinha de aeroporto. Inclusive a de esquerda.

Dito
isto, cabe refletir sobre os limites da experiência que este (nosso, meu pelo
menos) governo traz. No limite, dizia um amigo meu de larga e longa experiência,
desde os tempos da militância contra o Estado Novo, ele nos ensina que numa
moldura destas como vivemos a postura socialista deveria ser a de disputar os
"pequenos espaços" e refletir sobre os grandes, sobre o que deve ser pensado,
rescaldado e transubstanciado das experiências socialistas passadas e das
grandes revoltas – de Espártaco aos zapatistas e ao MST de hoje. Lembrava ele,
como argumento a seu favor, o sucesso inspirador em escala mundial (para além
das derrotas e vitórias eleitorais) da administração petista por 16 anos em
Porto Alegre (e ele não é gaúcho…) e a de 50 anos em Bolonha, na Itália.
Poderia eu acrescentar hoje a de Berlim, ilha à esquerda num oceano de vagas
encapeladas à direita…

Mas na verdade discuti que essa idéia é
improvável, pois que as forças sociais se aglutinam para disputar o poder, e
todas as suas fatias, não apenas algumas. Mas, contra-argumentava ele, a
tradição do Estado brasileiro, sulcado pelas cordialidades históricas, é a de
cooptar para dentro de si e de suas práticas, não o contrário. Mesmo um partido
de esquerda não tem força, fora de um momento revolucionário, para revirar esse
estado de pernas para o ar, e as "práticas difíceis" terminam por se impor em
setores vitais, como acabou acontecendo em setores do "nosso" (ele também assim
se expressa) governo. Mas, e eu voltava de novo a argumentar, é possível ainda
disputar pequenos e grandes espaços mesmo num Estado como o brasileiro, desde
que se pense grande, e não pequeno, como muitas vezes acabou acontecendo; o
Brasil hoje pensa grande em muitos setores, e dei como exemplo o energético e o
da política externa, ainda que abertos ambos a inúmeras discussões. E por aí
seguimos na discussão. Deu-me esse amigo lição profunda, como as a que costuma
dar: o governo Lula é uma pauta em discussão, não uma questão fechada, nem para
um lado nem para o outro. E precisa manter diálogos com todos os setores sociais
e todos os personagens internacionais, como vem fazendo, com espírito de
soberania e não de integração subalterna. Questão fechada só uma: a ele não pode
suceder a direita. Caso isso se realize, sentiremos saudades de nós mesmos,
diante do amargor com que todos passaremos a viver.

Publicado originalmente no site www.cartamaior.com.br

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