Aldeia Nagô
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Adeus à democracia. Por Zephyr Teachout

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“Podemos ter democracia neste país – ou podemos ter fortunas concentradas nas mãos de poucos. Não podemos ter os dois” – Louis D. Brandeis, da Associação de Justiça da Suprema Corte dos Estados Unidos (1856-1941)

“O desequilíbrio entre ricos e pobres é a doença mais antiga e mais fatal de todas as repúblicas” – Plutarco.

Deve haver uma palavra alemã para o sentimento desagradável de quando as previsões terríveis de alguém se tornam realidade. Schmerz-Prognose: a dor da premonição. Algo assim deve ter tomado o professor de Direito de Vanderbilt, Ganesh Sitaraman, às 22h do dia 8 de novembro de 2016, quando um demagogo com tendências cleptocráticas conquistou a Casa Branca. Sitaraman basicamente previu isso e coisa muito pior em seu novo livro, The Crisis of Middle-Class Constitution (A crise da constituição da classe média, sem tradução em português).

Existem muitas teorias sobre a vitória de Donald Trump: misoginia, nativismo, ansiedade cultural, insegurança econômica e o declínio das mídias tradicionais. Sitaraman não refuta nenhuma destas, mas apresenta um argumento estrutural diferente, e muito mais terrível: a desigualdade é incompatível com a estabilidade democrática.

De acordo com Sitaraman, uma sociedade extremamente desigual, com uma constituição construída para a igualdade, não pode durar muito. A menos que algo mude rapidamente, podemos em breve experimentar uma revolução, ou instabilidade, tentativas de golpe e violência, destinos comuns de sociedades desiguais. O mais provável, ele escreve, é que “a república se transforme em uma oligarquia, ou as pessoas sejam seduzidas por um demagogo autoritário”.

Quão desiguais somos? Durante gerações, a maior parte dos americanos era de classe média – até 2015. O 1% do topo detém mais de 30% da riqueza dos EUA, enquanto a metade mais pobre possui apenas 2,5%. Somente os bônus de Wall Street são o dobro do ganho de todos os trabalhadores que recebem salário mínimo no país. Somos grotesca, bizarra e grosseiramente desiguais, desiguais em riqueza, acesso à saúde, à escolaridade, ao ar e à água limpos. Desiguais em nosso acesso ao poder. E estamos mais desiguais a cada ano: desde que Ronald Reagan foi presidente, a renda dos que compõem o 1% mais rico duplicou.

Sitaraman acredita que simplesmente não temos o tipo de constituição para sobreviver a esse grau de desigualdade. Ele argumenta que existem dois tipos de estruturas constitucionais: Constituições de luta de classes e Constituições de classe média. Constituições de luta de classes – como as da Roma antiga, da Inglaterra e de Florença – pressupõem a desigualdade. Essas constituições foram projetadas com o objetivo de canalizar um antagonismo natural entre os muito ricos e os pobres através de mecanismos não violentos de negociação. Tanto os ricos quanto os pobres aceitam esses termos como condições para se verem livres da violência e da instabilidade que ameaçam os ricos e do despotismo e da arbitrariedade que ameaçam os pobres. Alguns usaram dispositivos como câmaras representativas específicas de classe para dar influência política a classes diferentes; alguns usaram dispositivos como loterias para garantir que os pobres pudessem ter voz.

O segundo tipo de constituição, a Constituição de classe média, depende de uma relativa igualdade entre classes e, especialmente, de uma classe média forte. A representação é projetada para canalizar diferentes interesses interclasses, e não a luta entre as classes. Os EUA, segundo Sitaraman, têm esse tipo de constituição. Temos, por exemplo, um Senado e uma Câmara sem exigência de propriedade para os candidatos, ou expectativa de que os mandatos sejam preenchidos pelos mais ricos. Não usamos loterias para escolher nossos representantes, mas nossos jurados. Ao contrário de outros países com outras constituições, não podemos sobreviver à desigualdade, porque não nos planejamos para ela.

James Harrington, pensador utópico do século XVII, aparece em todo o livro como o visionário subestimado por trás da Constituição americana. No livro de Harrington The Commonwealth of Oceana, ele apresentou um plano de sociedade onde a propriedade é distribuída uniformemente. A lei básica da política de Harrington é que o poder anda de mãos dadas com a propriedade: a desigualdade de propriedade leva à desigualdade de poder e vice-versa. Harrington parece ir além de Sitaraman, e argumenta que a liberdade depende de distribuição igualitária da riqueza. Ao contrário de Sitaraman, ele considera apenas um tipo de constituição bem-sucedida – o tipo de classe média. Harrington acreditava que a desigualdade leva ao luxo, e o luxo leva a desvios da razão e da justiça.

Os primeiros americanos podiam ser Harringtonianos – como definiu Sitaraman – e evitar uma constituição da luta de classes por causa da surpreendente igualdade que já existia no país. Na América revolucionária, o país era pouco povoado, com forte base agrária. Não havia extrema riqueza nem extrema pobreza, nem títulos de nobreza ou aristocracia hereditária. Sitaraman convoca uma grande variedade de pensadores coloniais de todo o país e do continente europeu para enfatizar a ausência de classes dos EUA, e destacar como isso proporcionou uma formidável oportunidade para a liberdade. Essas condições econômicas, argumenta, significavam que o republicanismo e o liberalismo americanos eram simplesmente diferentes das mesmas correntes de pensamento na velha Europa. Devido a essas diferentes realidades materiais, “a tradição Harringtoniana mescla temas republicanos e liberais” nos EUA, e não é preciso ver o liberalismo e o republicanismo como opostos um do outro.

Sitaraman demonstra, ao longo da história americana, um fio comum que uniu os Jacksonianos, os republicanos durante a reconstrução, os populistas, os progressistas do século XX e a equipe de Franklin Delano Roosevelt, em que pensadores divergentes vincularam nossa Constituição à nossa economia. Mesmo que sua leitura seja enviesada – e, às vezes, confundindo diferentes linhas de pensamento – há belas descobertas. Ele retoma o grande Daniel Webster, que em 1820 argumentava que a herança americana foi fundada na igualdade, e que a “influência natural” da desigualdade na distribuição da propriedade era o despotismo ou a violência.

Conselheiro de Elizabeth Warren e membro sênior do Center for American Progress, Sitaraman traz um olhar novo e um impressionante arco de pensamento histórico para uma questão atemporal: quais são as condições da liberdade? Ele percorre as lutas intelectuais dos séculos XIX e XX, quando os progressistas se esforçaram para reconciliar industrialização e democracia. Ele relembra episódios que levaram à criação progressiva do imposto de renda, ao desenvolvimento de leis antitruste, à criação de um estado de bem-estar… até o ocaso dessas conquistas – uma geração que reduziu impostos, parou de investir em infraestrutura pública e parou de impor as leis antitruste. Para Sitaraman, abandonamos as políticas essenciais à preservação da classe média.

Então, o que fazemos quando as condições em que um país foi fundado não existem mais? Podemos desistir da igualdade e adotar uma abordagem de luta de classe, ao que Sitaraman se opõe, ou podemos soar o alarme e adotar mudanças estruturais maciças, em toda a sociedade. Para ele, as reformas estruturais são a chave. Sitaraman é convincente em sua análise, e ainda mais convincente no nível mais amplo – fortalecer o trabalho, quebrar monopólios – mas menos convincente no que diz respeito às mudanças estruturais precisas que sugere, porque parecem pequenas perto da profundidade da crise com que ele nos aterroriza. A reinstauração da lei Glass-Steagall, embora importante, parece inadequada para a tarefa de revitalizar o igualitarismo americano. Quando se trata do financiamento de eleições, ele explica como o financiamento privado corrompe a formulação de políticas, mas não propõe mudar para o financiamento público. Em vez disso, ele enumera formas de limitar asrevolving doors (a expressão descreve a situação em que servidores públicos assumem cargos na indústria que regulavam anteriormente no governo, e vice-versa), e de fornecer serviços de lobby para comunidades desassistidas. Parece uma receita bem fraca para uma sociedade em crise – especialmente quando ele mesmo lembra que Roma passou de uma república estável para a guerra civil em apenas 53 anos.

O livro é melhor quando aborda a estrutura do pensamento público e como este mudou. Sitaraman conta a empolgante história do ataque de Franklin Roosevelt à plutocracia, e também como Roosevelt acreditava que a “tarefa comum dos homens de Estado e dos empresários” era a “criação de uma ordem econômica constitucional”. Ao separar o pensamento econômico do constitucional, a crise eleitoral da crise da desigualdade, traímos não só nossa história, mas as verdades básicas que sustentam nossa sociedade.

Talvez uma das mais difíceis e interessantes questões seja aquela em que Sitaraman apenas esbarra. Qual é a distinção entre propriedade e riqueza? Sitaraman pressupõe que a propriedade e a riqueza desempenham o mesmo papel na teoria democrática. Ele argumenta que uma das falhas de Harrington é que ele fala apenas de propriedade, não de riqueza, e atribui o erro, como ele define, à forma que tinha a riqueza no tempo de Harrington.

Mas talvez o foco de Harrington na propriedade, e não na riqueza, não seja acidental. Propriedade e riqueza, embora relacionadas, desempenharam papéis diferentes na teoria democrática ao longo da história. Por exemplo, em A Condição Humana, Hannah Arendt identifica a tendência moderna de confundir as duas. A propriedade, segundo Arendt, historicamente criou as condições para a cidadania ao criar um espaço privado para o cidadão e as condições da liberdade. “A propriedade, diferentemente da riqueza e da apropriação, indica a parte privada de um mundo comum e, portanto, é a condição política mais elementar para a mundanidade do homem.” A riqueza era menos permanente e menos capaz de conferir privacidade e liberdade. O que quer que se pese da crítica de Arendt, o livro de Sitaraman teria se beneficiado de um desenvolvimento mais completo da complicada relação entre propriedade e riqueza. Harrington escreveu: “Tal como é a proporção da propriedade em terra, é a natureza do império”, não “Tal como a proporção de riqueza, é a natureza do império”, e não há evidências de que estas frases sejam intercambiáveis ou que expressem a mesma teoria política.

As implicações políticas da diferença não são triviais. A redistribuição da riqueza através da tributação não é a mesma coisa que os regimes de propriedade estrutural, que levam à distribuição de propriedade, como leis igualitárias de herança ou regimes igualitários de propriedade intelectual.

Sitaraman está, certamente, correto quando afirma que a desigualdade de riqueza financeira também leva ao despotismo, mas há algo estruturalmente diferente entre as soluções que se concentram nas leis de propriedade como chave para o poder, e aquelas criadas para redistribuir riqueza acumulada. O livro, que tanto se apoia em teóricos do direito de propriedade, ganharia ao examinar as leis e estruturas de propriedade modernas e a atual desigualdade de propriedade – inclusive a propriedade intelectual – em nossa própria sociedade. A estrutura atual das leis de direitos autorais e de patentes tende a um alto grau de concentração de propriedade – e da liberdade que acompanha a propriedade – em nossa sociedade. O processo de patenteamento, por exemplo, é caro e intensivo em mão de obra, o que significa que as grandes empresas adquirem e defendem patentes mais facilmente do que as pequenas. Os proprietários de patentes usam o monopólio de propriedade para obter lucros, que usam então para fazer pressão por maiores proteções e maiores direitos à propriedade. A propriedade também lhes dá poder sobre reinos do pensamento e da ação, e o direito de excluir quem desejarem dos seus reinos de pensamento e ação. Os direitos de propriedade não são intercambiáveis %u20B%u20Bcom o direito de uso da riqueza financeira.

Quando Sitaraman escreveu o livro, Trump ainda não era presidente. Para quem está descontente com o atual presidente, no entanto, são significativas as implicações de seu raciocínio: nem os erros de Trump, nem candidatos democratas carismáticos, nem melhores aulas de cidadania farão diferença no longo prazo. Podem ajudar os democratas a ganhar uma ou duas eleições, mas não ajudarão a salvar nossa democracia. Não precisamos melhorar a comunicação eletrônica ou o corpo a corpo. O que precisamos é concentrar todos os esforços na luta contra a desigualdade estrutural.

Tradução de Clarisse Meireles. Publicado originalmene no The American Prospect

Artigo publicado em http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Adeus-a-democracia/4/38817

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