O precipício fiscal e a realidade. Por André Lara Resende |
Economia | |||
Sex, 10 de Fevereiro de 2023 03:25 | |||
Depois de tanto ouvir os economistas e a mídia martelarem insistentemente o problema do déficit público, da insustentabilidade da dívida, que estaria numa
trajetória explosiva, que o país estaria à beira de um abismo fiscal, saíram os números das contas públicas relativos ao ano passado. Na ausência de medidas corretivas, este cenário poderá levar a um novo ciclo de baixo crescimento, alta inflação e altas taxas de juros”. Juros altos premiam os rentistas e inviabilizam os investimentos na expansão da capacidade produtivaO Valor de 1 de fevereiro estampou a manchete: “Piora do risco fiscal leva juro real à maior taxa desde 2016”. No mesmo dia, o editorial da Folha de São Paulo, “Dívida alta, juro alto”, destaca em caixa alta: “Ataque a rentistas - a população que poupa e empresta ao governo - não resolverá o problema”. Como dizia Nelson Rodrigues, antecipando o mundo dos “fatos alternativos”, se os fatos não confirmam, pior para os fatos, mas vamos aos fatos. A dívida pública brasileira não é alta. É muito mais baixa do que a dos países desenvolvidos e em linha com os países em desenvolvimento, mas com duas diferenças cruciais: é toda em moeda nacional, detida por residentes e o país ainda tem quase 20% do PIB em reservas internacionais. O Brasil não tem dívida externa, só dívida interna, denominada em moeda nacional e carregada pelos rentistas, ou a população que poupa, como preferem alguns. Quem tem renda de ativos financeiros não é inimigo da pátria, mas faz parte da parcela privilegiada da população. Não são investidores, como gosta de denomina- los a mídia e os economistas do mercado financeiro, são rentistas, o que também não é crime, mas preciso distinguir entre quem aplica sua riqueza, herdada, conquistada ou poupada, em ativos financeiros para ter renda sem correr riscos e quem verdadeiramente investe em capital físico, organizacional e intelectual, e contribui para o aumento a capacidade produtiva do país.A taxa de juros básica, que é piso e referência para todas as demais taxas de juros no país é determinada pelo Banco Central. Repito, a taxa básica é integralmente controlada pelo Banco Central. As taxas para prazos mais longos são fixadas pelo mercado, instituições financeiras que operam com a dívida pública, com base nas estimativas que fazem da trajetória futura da taxa básica a ser fixada pelo BC. Se quisesse, o BC poderia fixar toda a estrutura a termo das taxas da dívida, como já faz há anos o Banco do Japão, e acabar com as pressões alarmistas para elevar ainda mais a já injustificavelmente alta taxa básica, em nome de um “risco fiscal” inexistente. A dívida pública interna é um passivo do Estado e um ativo - líquido e sem risco - do setor privado. Assim como a moeda, a dívida pública presta um serviço aos poupadores, às empresas, aos ricos, aos rentista e a todos os agentes na economia que precisam transferir poder aquisitivo no tempo sem correr riscos. Se o Estado se tornasse subitamente - ou milagrosamente como preferirão dizer seus críticos - superavitário e a dívida pública fosse integralmente resgatada, a economia teria sérias dificuldades para se manter saudável. Assim como no caso de uma súbita contração monetária, muito provavelmente, entraria em profunda recessão. A moeda e a dívida pública interna são um bem público indispensável ao bom funcionamento da economia.Sei bem que essa não é a visão convencional e dominante, mas é a que corresponde à realidade do mundo com moeda fiduciária. Tem uma longa e admirável tradição intelectual desde Aristóteles. Na história recente do pensamento econômico, tem representantes na “banking school” inglesa do século 19, passando por Wicksell, Schumpeter, Ingham, Abba Lerner, Minsky, entre muitos outros, quase sempre mantidos à margem das ideias convencionalmente aceitas. Eu poderia me alongar sobre os equívocos da visão convencional, tema que já tratei em diversos artigos ao longo dos últimos anos, mas não vale a pena. João Moreira Salles abre a introdução do seu recém publicado “Arrabalde: em busca da Amazônia” (Cia das Letras, 2022) afirmando que é difícil compreender quando não se presta atenção. Mais à frente, no livro, leitura obrigatória para entender o drama do descaso com a floresta, cita Simone Weil, a pensadora francesa, para quem a atenção é a forma mais rara e pura da generosidade.No mundo contemporâneo, a atenção se tornou ainda mais difícil. Para os temas técnicos, que além da atenção exigem reflexão, sem parti pris, é praticamente impossível. Artigo publicado originalmente no Jornal O Valor
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