Portugal: três reflexões para um futuro incerto. Por Boaventura de Sousa Santos |
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Qua, 13 de Março de 2024 05:17 | |||
A não-democracia é o conjunto factores que, não estando sujeitos ao escrutínio democrático, influenciam de modo significativo os processos políticos e, sobretudo, eleitorais. São os elefantes dentro da sala. O sistema judicial é a causa próxima de algumas crises políticas recentes. É importante averiguar se não estarão a ocorrer em Portugal casos de guerra jurídica (lawfare) à semelhança do que tem ocorrido noutros países. Trata-se do uso do sistema judicial, não para averiguar ilícitos jurídicos, mas para neutralizar adversários políticos. Esta nova arma tem sido utilizada preferencialmente contra políticos de esquerda e assenta no uso político da luta contra a corrupção. O segundo elefante é a comunicação social. Sem pôr em causa o fundamental serviço público dos média, não podemos deixar de reconhecer que nos últimos vinte anos houve uma viragem à direita no tratamento das notícias e nos comentários políticos. O modo como foi tratado o tema da TAP nos últimos anos e o tema das urgências hospitalares nos últimos meses são exemplares a esse respeito. O repetitivo e espectacularizado esmiuçamento dos casos, mais do que esclarecer os cidadãos, visava desgastar o governo. O terceiro elefante são as redes sociais que foram utilizadas, sobretudo pelo Chega e pela Iniciativa Liberal (IL), os dois partidos de ultra-direita, para criar polarização social, transformando adversários políticos a confrontar em inimigos a destruir. Uma lógica tribal ávida de adesão e avessa à confrontação dos factos cria a voragem da destruição do que está vigente de modo dominante sem curar de saber o que (e como) se deve construir para o substituir. O não-nacional é a componente dos interesses globalmente organizados que interferem de modo activo nos processos políticos dos diferentes países selecionados para intervenção em função de estratégias globais. A intervenção nas redes, o financiamento de partidos de extrema direita ou de ultradireita e de institutos supostamente de investigação, mas, de facto, think tanks e centros de comunicação estratégica são alguns dos mecanismos de interferência. O Atlas Network (anteriormente Atlas Economic Research Foundation) é um dos agentes globais mais conhecidos, uma agência não governamental baseada nos EUA que “fornece treino, contactos e financiamento a grupos libertários, pró-mercado livre e conservadores em todo o mundo”. A internacional ultra-conservadora visa transformar a Europa num aliado incondicional dos EUA, criar o pânico anti-Rússia de modo a justificar os investimentos em armas em detrimento das políticas sociais e ambientais e travar a China. O não-presente é o modo como a memória de um povo é tratada valorizada ou manipulada para produzir resultados políticos concretos. Em Portugal, essa memória assenta em três pilares, cada um deles com a sua temporalidade. O primeiro pilar é a memória da revolução do 25 de Abril de 1974, cujo quinquagésimo aniversário celebramos este ano. Os portugueses concebem o 25 de Abril como o acto fundador da modernidade em que hoje vivem. Em Portugal, a democracia ainda não é um regime formal emocionalmente neutro ou pragmaticamente descartável. Apesar de todas as suas limitações, avaliar políticos e votar é a manifestação de uma potência existencial que, apesar de muitas vezes frustrada nas expectativas, ainda não se transformou numa frustração colectiva. Estão vivos e activos alguns milhões de portugueses que votaram pela primeira vez em 1976. Essa emoção fundadora tem sido agressivamente manipulada pelo Chega, mas, contraditoriamente, o Chega alimenta-se dela, trazendo para as mesas de votos muitos cidadãos descrentes da democracia ( a taxa de abstenção mais baixa desde há muitos anos). O voto de protesto é um voto tão democrático como os outros. Os empreendedores por detrás dele é que o usam para destruir a democracia. O segundo pilar da memória dos portugueses é a crise existencial de 2011 com o colapso financeiro: a tutela da Troika ( Comissão Europeia, Fundo Monetário Internacional e Banco Central Europeu) e um governo de direita para quem a austeridade imposta externamente aos trabalhadores e à classe média não era suficiente e devia ser ainda mais agravada por iniciativa própria. Os trabalhadores e os pensionistas, os jovens e os idosos, lembram-se do que então ocorreu. O que correu para o rio da memória não foram apenas os cortes nas pensões, a perda de direitos laborais, a pobreza abrupta e a iniquidade com que o sofrimento foi distribuído entre as diferentes classes sociais. Correu sobretudo a ferida na soberania e na auto-estima de um povo que se libertara do pesadelo colonial para, pouco depois, abraçar o sonho europeu, e que via agora esse sonho convertido num novo pesadelo (muitos se lembram dos termos colonialistas usados pelos jornais alemães e ingleses para se referir a Portugal e aos portugueses). Era a destruição de uma materialidade muito concreta traduzida no aumento de bem-estar que as classes populares tinham vindo a experimentar apenas há três ou quatro gerações. As forças de direita estão coladas a essa memória e durante a campanha eleitoral fizeram tudo para a avivar (o campeão da austeridade, Passos Coelho, na campanha). O retumbante êxito, que estava ao seu alcance, fugiu-lhes. A direita moderada, Aliança Democrática, terminou quase empatada com o Partido Socialista. Menos visível por agora é que a direita moderada pensou que ao respeitar a primeira memória (do 25 de Abril) podia desqualificar a memória de 2011. Com a mesma certeza com que rejeitaram o Chega, aceitaram a Iniciativa Liberal, cujo programa eleitoral é muito mais assustador que o do Chega no plano social. Se o Chega representa a destruição política do 25 de Abril, a IL representa a destruição socioeconómica do 25 de Abril. O seu programa é uma versão do paradigma ultraliberal de Friedrich Hayek e Ludwig von Mises, ridicularizado nos anos de 1930 e reabilitado quarenta anos depois no Chile do ditador Augusto Pinochet (1973). O programa da IL significa a privatização de tudo o que se move e pode dar lucro. Os dirigentes e eleitores da IL professam a democracia, mas talvez nem se deem conta de que o seu programa é inaplicável em democracia. Já o mesmo não se pode dizer dos seus mentores. Hayek admitia o colapso da democracia como um dano colateral das suas políticas económicas, cuja implementação era de longe o mais importante. Escreveu ao diário alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung em 1977 a protestar contra a crítica injusta feita no periódico contra o regime de Pinochet no Chile; considerava o Chile de Pinochet como um milagre político e económico e invectivava contra a Amnistia Internacional, considerando-a “uma arma de difamação da política internacional”. O terceiro pilar da memória dos portugueses diz respeito ao desempenho do governo durante a pandemia do coronavírus. Foi um excelente desempenho enquanto uma articulação exemplar entre políticos, profissionais de saúde e cidadãos conscientes da seriedade da emergência de saúde pública. Pouparam-se vidas que noutros mais países mais ricos se perderam. Esta memória foi desvalorizada e o governo que a tornou possível desbaratou o capital de confiança que granjeara ao não saber compensar adequadamente os enormes sacrifícios do SNS num contexto em que a saúde privada desapareceu como que por encanto. Se o governo, no dia seguinte a dar por finda a pandemia, tivesse aumentado em 100% os salários de todos os profissionais do SNS, o povo português teria aplaudido de pé. Lamentavelmente, as contas certas (a preocupação em diminuir a dívida externa e o défice orçamental) não acertaram com o país. Com excepção do Partido Comunista, todos os pequenos partidos à esquerda do Partido Socialista mantiveram o seu peso parlamentar e um deles, o Livre, ecologista e europeísta, aumentou o número de deputados de 1 para 4. Como não é provável que a direita moderada, Aliança Democrática, aceite governar em coligação com a extrema-direita, o Chega, vamos ter nos próximos meses um governo minoritário e, portanto, um cenário de grande instabilidade. Boaventura de Sousa SantosArtigo publicado originalmente no Brasil 247
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