Aldeia Nagô
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Caí no mundo e não sei voltar por Eduardo Galeano

7 - 10 minutos de leituraModo Leitura

O que acontece comigo é que não consigo andar pelo mundo pegando coisas e trocando-as pelo modelo seguinte só por que alguém adicionou uma nova função ou a diminuiu um pouco…


Não
faz muito, com minha mulher, lavávamos as fraldas dos filhos, pendurávamos na
corda junto com outras roupinhas, passávamos, dobrávamos e as preparávamos para
que voltassem a serem sujadas.

E
eles, nossos nenês, apenas cresceram e tiveram seus próprios filhos se
encarregaram de atirar tudo fora, incluindo as fraldas. Se entregaram,
inescrupulosamente, às descartáveis!

Sim,
já sei. À nossa geração sempre foi difícil jogar fora. Nem os defeituosos
conseguíamos descartar! E, assim, andamos pelas ruas, guardando o muco no lenço
de tecido, de bolso.

Nããão!
Eu não digo que isto era melhor. O que digo é que, em algum momento, me distraí,
caí do mundo e, agora, não sei por onde se volta.

O
mais provável é que o de agora esteja bem, isto não discuto. O que acontece é
que não consigo trocar os aparelhos de som uma vez por ano, o celular a cada
três meses ou o monitor do computador por todas as novidades.

Guardo
os copos descartáveis! Lavo as luvas de látex que eram para usar uma só vez. Os
talheres de plástico convivem com os de aço inoxidável na gaveta dos talheres! É
que venho de um tempo em que as coisas eram compradas para toda a
vida!

É
mais! Se compravam para a vida dos que vinham depois! A gente herdava relógios
de parede, jogos de copas, vasilhas e até bacias de louça.

E
acontece que em nosso, nem tão longo matrimônio, tivemos mais cozinhas do que as
que havia em todo o bairro em minha infância, e trocamos de refrigerador três
vezes.

Nos
estão incomodando! Eu descobri! Fazem de propósito! Tudo se lasca, se gasta, se
oxida, se quebra ou se consome em pouco tempo para que possamos trocar. Nada se
arruma. O obsoleto é de fábrica.

Aonde
estão os sapateiros fazendo meia-solas dos tênis Nike? Alguém viu algum
colchoeiro encordoando colchões, casa por casa? Quem arruma as facas elétricas?
o afiador ou o eletricista? Haverá teflon para os funileiros ou assentos de
aviões para os talabarteiros?

Tudo
se joga fora, tudo se descarta e, entretanto, produzimos mais e mais e mais
lixo. Outro dia, li que se produziu mais lixo nos últimos 40 anos que em toda a
história da humanidade.

Quem
tem menos de 30 anos não vai acreditar: quando eu era pequeno, pela minha casa
não passava o caminhão que recolhe o lixo! Eu juro! E tenho menos de … anos!
Todos os descartáveis eram orgânicos e iam parar no galinheiro, aos patos ou aos
coelhos (e não estou falando do século XVII). Não existia o plástico, nem o
nylon. A borracha só víamos nas rodas dos autos e, as que não estavam rodando,
as queimávamos na Festa de São João. Os poucos descartáveis que não eram comidos
pelos animais, serviam de adubo ou se queimava..

Desse
tempo venho eu.  E não que tenha sido melhor…. É que não é fácil para uma pobre
pessoa, que educaram com "guarde e guarde que alguma vez pode servir para alguma
coisa", mudar para o "compre e jogue fora que já vem um novo modelo".

Troca-se
de carro a cada três anos, no máximo, por que, caso contrário, és um pobretão.
Ainda que o carro que tenhas esteja em bom estado… E precisamos viver
endividados, eternamente, para pagar o novo!!! Mas… por amor de Deus!

Minha
cabeça não resiste tanto. Agora, meus parentes e os filhos de meus amigos não só
trocam de celular uma vez por semana, como, além disto, trocam o número, o
endereço eletrônico e, até, o endereço real.

E
a mim que me prepararam para viver com o mesmo número, a mesma mulher e o mesmo
nome (e vá que era um nome para trocar). Me educaram para guardar tudo. Tuuuudo!
O que servia e o que não servia. Por que, algum dia, as coisas poderiam voltar a
servir.

Acreditávamos
em tudo. Sim, já sei, tivemos um grande problema: nunca nos explicaram que
coisas poderiam servir e que coisas não. E no afã de guardar (porque éramos de
acreditar), guardávamos até o umbigo de nosso primeiro filho, o dente do
segundo, os cadernos do jardim de infância e não sei como não guardamos o
primeiro cocô.

Como
querem que entenda a essa gente que se descarta de seu celular há poucos meses
de o comprar? Será que quando as coisas são conseguidas tão facilmente, não se
valorizam e se tornam descartáveis com a mesma facilidade com que foram
conseguidas?

Em
casa tínhamos um móvel com quatro gavetas. A primeira gaveta era para as toalhas
de mesa e os panos de prato, a segunda para os talheres e a terceira e a quarta
para tudo o que não fosse toalha ou talheres. E guardávamos…

Como
guardávamos!! Tuuuudo!!! Guardávamos as tampinhas dos refrescos!! Como, para
quê?  Fazíamos limpadores de calçadas, para colocar diante da porta para tirar o
barro. Dobradas e enganchadas numa corda, se tornavam cortinas para os bares. Ao
fim das aulas, lhes tirávamos a cortiça, as martelávamos e as pregávamos em uma
tabuinha para fazer instrumentos para a festa de fim de ano da
escola.

Tuuudo
guardávamos! Enquanto o mundo espremia o cérebro para inventar acendedores
descartáveis ao término de seu tempo, inventávamos a recarga para acendedores
descartáveis. E as Gillette até partidas ao meio se transformavam em apontadores
por todo o tempo escolar. E nossas gavetas guardavam as chavezinhas das latas de
sardinhas ou de corned-beef, na possibilidade de que alguma lata viesse sem sua
chave.

E
as pilhas! As pilhas dos primeiros rádios Spica passavam do congelador ao
telhado da casa. Por que não sabíamos bem se se devia dar calor ou frio para que
durassem um pouco mais. Não nos resignávamos que terminasse sua vida útil, não
podíamos acreditar que algo vivesse menos que um jasmim. As coisas não eram
descartáveis. Eram guardáveis.

Os
jornais!!! Serviam para tudo: para servir de forro para as botas de borracha,
para por no piso nos dias de chuva e por sobre todas as coisa para
enrolar.

Às
vezes sabíamos alguma notícia lendo o jornal tirado de um pedaço de carne!!! E
guardávamos o papel de alumínio dos chocolates e dos cigarros para fazer guias
de enfeites de natal, e as páginas dos almanaques para fazer quadros, e os
conta-gotas dos remédios para algum medicamento que não o trouxesse, e os
fósforos usados por que podíamos acender uma boca de fogão (Volcán era a marca
de um fogão que funcionava com gás de querosene) desde outra que estivesse
acesa, e as caixas de sapatos se transformavam nos primeiros álbuns de fotos e
os baralhos se reutilizavam, mesmo que faltasse alguma carta, com a inscrição a
mão em um valete de espada que dizia "esta é um 4 de copas".

As
gavetas guardavam pedaços esquerdos de prendedores de roupa e o ganchinho de
metal. Ao tempo esperavam somente pedaços direitos que esperavam a sua outra
metade, para voltar outra vez a ser um prendedor completo.

Eu
sei o que nos acontecia: nos custava muito declarar a morte de nossos objetos.
Assim como hoje as novas gerações decidem matá-los tão-logo aparentem deixar de
ser úteis, aqueles tempos eram de não se declarar nada morto: nem a Walt
Disney!!!

E
quando nos venderam sorvetes em copinhos, cuja tampa se convertia em base, e nos
disseram: Comam o sorvete e depois joguem o copinho fora, nós dizíamos que sim,
mas, imagina que a tirávamos fora!!! As colocávamos a viver na estante dos copos
e das taças. As latas de ervilhas e de pêssegos se transformavam em vasos e até
telefones. As primeiras garrafas de plástico se transformaram em enfeites de
duvidosa beleza. As caixas de ovos se converteram em depósitos de aquarelas, as
tampas de garrafões em cinzeiros, as primeiras latas de cerveja em porta-lápis e
as cortiças esperaram encontrar-se com uma garrafa.

E
me mordo para não fazer um paralelo entre os valores que se descartam e os que
preservávamos. Ah!!! Não vou fazer!!!

Morro
por dizer que hoje não só os eletrodomésticos são descartáveis; também o
matrimônio e até a amizade são descartáveis. Mas não cometerei a imprudência de
comparar objetos com pessoas.

Me
mordo para não falar da identidade que se vai perdendo, da memória coletiva que
se vai descartando, do passado efêmero. Não vou fazer.

Não
vou misturar os temas, não vou dizer que ao eterno tornaram caduco e ao caduco
fizeram eterno.

Não
vou dizer que aos velhos se declara a morte apenas começam a falhar em suas
funções, que aos cônjuges se trocam por modelos mais novos, que as pessoas a que
lhes falta alguma função se discrimina o que se valoriza aos mais bonitos, com
brilhos, com brilhantina no cabelo e glamour.

Esta
só é uma crônica que fala de fraldas e de celulares. Do contrário, se
misturariam as coisas, teria que pensar seriamente em entregar à bruxa, como
parte do pagamento de uma senhora com menos quilômetros e alguma função nova.
Mas, como sou lento para transitar este mundo da reposição e corro o risco de
que a bruxa me ganhe a mão e seja eu o entregue…

Eduardo
Galeano é jornalista e escritor uruguaio

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