Aldeia Nagô
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Cara revista Veja, presta atenção. Por Tarsilla Alvarindo

4 - 5 minutos de leituraModo Leitura
Tarsila-Alvarindo

Cara revista Veja, presta atenção, vamos bater um papo bem sério sobre essa sua capa racista. Sim, isso mesmo R A C I S T AAAAA. Faz algum tempo que vocês são racistas, machistas, sexistas, misóginos, homofóbicos, enfim, extremamente conservadores de todas as formas possíveis e até mesmo inimagináveis.

Mas hoje vocês me fizeram chorar, chorei muito quando me deparei com a reprodução do quadro “Operários” de Tarsilla do Amaral ilustrando uma capa sobre políticas de cotas, embora se propunha positiva, a matéria escorrega no racismo quando deixa escapar logo no subtítulo que está surpresa com a inteligência de pretos e pobres. 

Senti um misto de tristeza, de raiva, de desesperança, um mundo de sentimentos negativos tomou conta de mim. E a todo o tempo enquanto cuidava dos meus afazeres na rua eu ia olhando para os rostos negros que encontrava no caminhos desempenhando as mais diversas funções. E pensava, por que o resultado das políticas de cotas lhes deixam surpresos? Para vocês, pretos e pobres não poderiam ter bom desempenho nas universidades e no mercado de trabalho? Não somos capazes? Como acreditar numa sociedade em que julgam que pretos e pobres são intelectualmente inferiores? Sabe o que sempre nos faltou e ainda falta OPORTUNIDADE. E essa oportunidade veio sim com a política de cotas que vocês sempre condenaram.

Sou negra, pobre, não tive a oportunidade de frequentar os bancos das melhores escolas particulares, mas tive a oportunidade e felicidade de ser aluna da Universidade Federal da Bahia, e mesmo trabalhando durante toda a graduação e no final dela me dividindo entre dois estágios e o trabalho de conclusão de curso, fui aprovada com 9,5 no meu TCC. Mas eu não sou a única que precisou de jornada dupla, ou tripla enquanto estava na universidade, essa é a condição de muitos de nós para nos mantermos lá.

Ela é pública, mas os livros, as xerox, a locomoção, a alimentação, nada disso é de graça e nem mesmo a universidade, porque afinal, meus queridos, nós pretos e pobres também pagamos os impostos que a mantém. Logo, nada mais justo que a gente tenha o mesmo direito de frequenta-la. Isso não é um favor que vocês nos fazem, abrir as portas das universidades para pretos e pobres ainda é muito pouco diante de tudo que nos tiraram e nos tiram todos os dias. Nos escravizaram e depois “aboliram” jogando na sarjeta. Isso não é reparação. O ideal seria se não precisássemos de cotas. Mas vocês ainda não nos vêm como iguais. Ainda sente-se melhores.

Pensa que é fácil ver gente, isso mesmo GENTE PRETA, que vocês insistem em tratar como coisas, sendo dizimada todos os dias? E ainda ter que escutar esse papinho de meritocracia, de gente que nunca precisou pegar um transporte público se quer… não não é fácil e mesmo com diploma, trabalhando, vivendo em um bairro classe média, continua não sendo fácil. 

Muitas vezes a luta cansa, a gente olha pro lado e vê que a onda racista bizarra está em todo lugar do mundo, ver que no país que vocês veneram as pessoas estão em guerra nas ruas contra os negros, em pleno século XXI. Bate um desanimo, mas logo me lembro que eu não posso parar. Não posso me negar a continuar lutando para que mais gente como eu tenha espaço e lugar de fala. Vocês precisam saber que nós pretos não servimos apenas para cuidar das suas casas, das suas cozinhas, dos seus filhos.

Desenvolvemos essas atividades muito bem sim, mas podemos ser muito, muito mais. Nós podemos ser o que quisermos desde que tenhamos oportunidades para tal. Atualmente apresento um programa diário sobre saúde, atuo levando informação de qualidade para as pessoas e isso me dá uma força absurda para continuar e impulsionar muito mais gente como eu. Não é fácil ser negra e pobre em nenhum lugar no mundo, no Brasil então, que um dos maiores de veículos de comunicação estampa racismo na sua capa é ainda mais complicado. 
Podem se acostumar, vai ter preto e pobre na universidade sim. E vai ter muito mais, a luta não parou com as cotas, ela continua porque ainda não tá bom, ainda nos matam, nos maltratam, somos menos remunerados, somos humilhados, temos que viver provando a todo tempo que somos gente e precisamos ser tratados como tal, isso dói, como dói. 

Ah e antes que eu esqueça, você preto que conquistou “seu lugar ao sol” e acha que não precisa mais lutar, e ainda tem a desfaçatez de comportar-se como Branco e criticar a política de cotas. Só te digo uma coisa. Se você esquecer quem é, e achar que nada disso é com você, lamento. Eles sempre nos lembram quem somos. E você está aí usufruindo dos frutos de luta e do sangue de muita gente.

Tarsila Alvarindo é Jornalista

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