Aldeia Nagô
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Cegos, Surdos e Loucos, por Fernando Horta

5 - 7 minutos de leituraModo Leitura
Fernando_Horta

No primeiro semestre da faculdade de História, na saudosa UFRGS, tive a oportunidade de cursar uma disciplina que era geralmente direcionada aos alunos com mais bagagem: História da Cultura Ocidental. Por algum motivo, naquele ano ela não tinha pré-requisito e lá foi aquele rapaz recém-saído do segundo grau a assistir aulas sobre “cultura”, “ocidental” … em forma de “história”.

Logo de início, o falecido professor Luiz Roberto Lopez deixou clara sua preferência por uma disciplina “visual”. Haveria textos, claro e todos estavam já no “xerox”, mas em cada aula o professor iria despejar de 150 a 200 slides de sua monstruosa e belíssima coleção.

Lopez dissertava com uma verve e uma didáticas primorosas sobre História da Arte, contando detalhes estilísticos e partes da vida dos pintores e escultores. Enquanto a ideia de “arte” estava atrelada à ideia de “belo”, meus sentidos acharam as aulas maravilhosas. A arte grega e a romana me pareciam toscas, sem os conhecimentos sobre profundidade e o jogo de luz sombra. Chegava-se no trecento (primeira fase do Renascimento) e as pinturas tinham erros de proporção gravíssimos. Braços e pernas eram maiores que o corpo. Mas no quatrocento ficava tudo uma perfeição. O belo em condição primorosa. É Michelangelo ordenando que seu Moisés falasse. Era só o que faltava.?

O cinquecento vinha com cores mais escuras a predominância do preenchimento frente ao traço, a diminuição do tamanho das obras e as questões urbanas aparecendo como temas importantes. E então a gente via a ideia-síntese de que toda obra de arte é uma obra de vários autores. Há aquele que a faz, mas há também a sociedade que a produz, que a permite existir. A sociedade com a qual a obra dialoga, recebendo seus insumos e provocando um pensar. A arte funciona como um acumular de pensamentos, sentimentos, medos e sonhos. O artista apenas dá vazão – obviamente através de si como lente – para um turbilhão de sentidos que são materializados num momento. A arte renascentista, que fora objetivamente uma arte de louvação ao homem e assim, por conseguinte, louvação ao Deus e à sua Igreja Católica, dava lugar no cinquecento a uma releitura protestante. Era o incômodo da sociedade que questionava a Igreja Católica transposta para as telas. Era o urbano se tornando mais importante que o religioso.

Enquanto a disciplina seguia, em algum lugar no século XIX houve um divórcio entre a noção de “belo” e a noção de “arte”. A pintura que tanto tentava representar as realidades haveria de ser superada pela fotografia. Houve um mal-estar no ocidente. Nada conseguiria reproduzir a realidade com tamanha precisão como aquela máquina estranha, que na segunda década do século XIX passava a retratar o mundo. Me recordo que Luiz Roberto Lopez dedicou uma aula inteira a esta ruptura. O sentido de belo apenas ocasionalmente voltaria a dançar com a arte. E sempre por entre o interesse do artista, e não mais como imposição fundante. A explicação era sólida e racional. Mas a ignorância do aluno não aceitava este divórcio, e tal qual um filho que nega a separação dos pais, eu passei a me colocar contrário a esta “arte moderna”. O que era o cubismo? O dadaísmo? Senão formas imperfeitas e mal postas em telas mal pintadas que jamais – ja-mais – teriam o condão de se equipararem ao Renascimento. Arte moderna então … lixo.

Assim pensava arrogantemente aquele aluno, que dentro de uma sala tentava transformar a vida do professor num inferno para mostrar o nível de “degeneração” artística que tudo vinha se tornando no século XX. Me recordo que numa das aulas, cheguei a levar uma reportagem de “ass painting”, que era o “último grito” em “Niu Iórqui”. “Ass painting” consistia em a artista ficar nua com seu ânus virado para a tela, derramar tinta sobre suas partes “pudendas” e, em seguida, soprar com força seus gases internos para que produzissem uma marca na tela. Eu não sei se eu fiquei mais ensandecido de ler a reportagem artística ou de leva-la ao professor e ver sua expressão quando disse “que interessante!”. Estava claro para mim que aquele professor não sabia o que ensinava. E estava claro para o professor que ele não me ensinava o que sabia. Ambos chegamos à conclusão que era necessária mais força.

De minha parte, me tornei mais contundente nas críticas, sobretudo na “arte” do século XX. Todas críticas infantis. Nada que prestasse. De parte do professor, recebi um convite: haveria uma apresentação da orquestra da universidade e ele me perguntou se eu gostava de música clássica. Respondi que sim. Claro, conhecia Mozart, Beethoven, Bach e até Ravel. (O “até” vai para demonstrar o pedantismo e ignorância do aluno). O professor me convidou para assistir Masao Ohki, sinfonia número 5. Ao chegarmos no local ele me colocou bem na primeira fileira, bem defronte ao espetáculo e saiu para o meio do teatro com um leve sorriso. E fiquei a li ouvindo Masao Ohki tocado quase dentro dos meus tímpanos. A partir do décimo quinto minuto começa uma dissonância metálica desconfortável. Aos vinte e três minutos, a dissonância metálica fica quase insuportável, mas é a partir do minuto 30 que você começa a se arrepender de ter sentado na frente.

Ao sair, atônito, da apresentação, o professor me perguntou: “o que achaste?”. Do alto da minha ignorância eu disse que era exatamente sobre o que eu falava, que aquela sinfonia não chegava aos pés da beleza de uma quinta ou mesmo da nona de Beethoven. Aquilo não era arte, eu tinha ficado muito transtornado com a apresentação, inquieto e desconfortável. Luiz Roberto Lopez era baixinho, e gostava de falar caminhando. Depois de alguns passos em silêncio ele me disse: “O nome da sinfonia é Hiroshima. Me surpreende que você queira que o autor mostre algo de belo sobre Hiroshima. Me surpreende que você sequer tenha buscado saber o que ia ouvir. Arte é o sentimento canalizado e não a técnica. Arte é o questionamento, a visão enquadrada e não o domínio de pincéis ou cinzéis.”

Levei algumas horas para compreender a lição. Levei alguns meses refletindo sobre ela.

O que assusta, não é a ignorância do MBL e seus seguidores atacarem uma mostra de arte Queer. O que assusta é a postura do Santander de deixar-se ser pautado por pessoas cegas em sua ignorância, surdas para qualquer argumento racional e completamente loucas em seu ódio ao diferente. A própria reação do MBL deixa claro que a exposição é essencial. Que precisa acontecer. Esta e outras. O próprio despreparo de uma parte da sociedade ao se enxergar no espelho é a demonstração cabal da necessidade de mais Arte, mais Filosofia e mais História. Precisamos ser desconcertados, precisamos ser transtornados. Precisamos ficar desconfortáveis com o mundo. Arte mostra o que a sociedade não quer ver, a Filosofia questiona o que ela dá por certo e a História lembra do que ela quer esquecer.

Artigo publicado originalmente em http://jornalggn.com.br/blog/blogfernando/cegos-surdos-e-loucos-por-fernando-horta

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