Clarice por Clarice. Por Pedro Karp Vasquez
Ao mesmo tempo que ousava desvelar as profundezas de sua alma em seus
escritos, Clarice Lispector costumava evitar declarações excessivamente
íntimas nas entrevistas que concedia, tendo afirmado mais de uma vez que
jamais escreveria uma autobiografia. Contudo, nas crônicas que publicou no
Jornal do Brasil entre 1967 e 1973, deixou escapar de tempos em tempos
confissões que, devidamente pinçadas, permitem compor um auto-retrato
bastante acurado, ainda que parcial. Isto porque Clarice por inteiro só os
verdadeiramente íntimos conheceram e, ainda assim, com detalhes ciosamente
protegidos por zonas de sombra. A verdade é que a escritora, que reconhecia
com espanto ser um mistério para si mesma, continuará sendo um mistério para
seus admiradores, ainda que os textos confessionais aqui coligidos
possibilitem reveladores vislumbres de sua densa personalidade.
A descoberta do amor
"[…] Quando criança, e depois adolescente, fui precoce em muitas
coisas. Em sentir um ambiente, por exemplo, em apreender a atmosfera íntima
de uma pessoa. Por outro lado, longe de precoce, estava em incrível atraso
em relação a outras coisas importantes. Continuo, aliás, atrasada em muitos
terrenos. Nada posso fazer: parece que há em mim um lado infantil que não
cresce jamais.
Até mais que treze anos, por exemplo, eu estava em atraso quanto ao que os
americanos chamam de fatos da vida. Essa expressão se refere à relação
profunda de amor entre um homem e uma mulher, da qual nascem os filhos.
[…] Depois, com o decorrer de mais tempo, em vez de me sentir
escandalizada pelo modo como uma mulher e um homem se unem, passei a achar
esse modo de uma grande perfeição. E também de grande delicadeza. Já então
eu me transformara numa mocinha alta, pensativa, rebelde, tudo misturado a
bastante selvageria e muita timidez.
Antes de me reconciliar com o processo da vida, no entanto, sofri
muito, o que poderia ter sido evitado se um adulto responsável se tivesse
encarregado de me contar como era o amor. […] Porque o mais surpreendente
é que, mesmo depois de saber de tudo, o mistério continuou intacto. Embora
eu saiba que de uma planta brota uma flor, continuo surpreendida com os
caminhos secretos da natureza. E se continuo até hoje com pudor não é porque
ache vergonhoso, é por pudor apenas feminino.
Pois juro que a vida é bonita."
Temperamento impulsivo
"Sou o que se chama de pessoa impulsiva. Como descrever? Acho que
assim: vem-me uma idéia ou um sentimento e eu, em vez de refletir sobre o
que me veio, ajo quase que imediatamente. O resultado tem sido meio a meio:
às vezes acontece que agi sob uma intuição dessas que não falham, às vezes
erro completamente, o que prova que não se tratava de intuição, mas de
simples infantilidade.
Trata-se de saber se devo prosseguir nos meus impulsos. E até que
ponto posso controlá-los. […] Deverei continuar a acertar e a errar,
aceitando os resultados resignadamente? Ou devo lutar e tornar-me uma pessoa
mais adulta? E também tenho medo de tornar-me adulta demais: eu perderia um
dos prazeres do que é um jogo infantil, do que tantas vezes é uma alegria
pura. Vou pensar no assunto. E certamente o resultado ainda virá sob a forma
de um impulso. Não sou madura bastante ainda. Ou nunca serei."
Lúcida em excesso
"Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual
e comum: é uma lucidez vazia, como explicar? assim como um cálculo
matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise. Estou por assim
dizer vendo claramente o vazio. E nem entendo aquilo que entendo: pois estou
infinitamente maior do que eu mesma, e não me alcanço. Além do quê: que faço
dessa lucidez? Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar o inferno
humano – já me aconteceu antes. Pois sei que – em termos de nossa diária e
permanente acomodação resignada à irrealidade – essa clareza de realidade é
um risco. Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve para
viver os dias. Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis. Eu
consisto, eu consisto, amém.".
Ideal de vida
"Um nome para o que eu sou, importa muito pouco. Importa o que eu
gostaria de ser.
O que eu gostaria de ser era uma lutadora. Quero dizer, uma pessoa
que luta pelo bem dos outros. Isso desde pequena eu quis. Por que foi o
destino me levando a escrever o que já escrevi, em vez de também desenvolver
em mim a qualidade de lutadora que eu tinha? Em pequena, minha família por
brincadeira chamava-me de ‘a protetora dos animais’. Porque bastava acusarem
uma pessoa para eu imediatamente defendê-la.
[…] No entanto, o que terminei sendo, e tão cedo? Terminei sendo
uma pessoa que procura o que profundamente se sente e usa a palavra que o
exprima.
É pouco, é muito pouco."
Escritora,
sim; intelectual, não
"Outra coisa que não parece ser entendida pelos outros é quando me
chamam de intelectual e eu digo que não sou. De novo, não se trata de
modéstia e sim de uma realidade que nem de longe me fere. Ser intelectual é
usar sobretudo a inteligência, o que eu não faço: uso é a intuição, o
instinto. Ser intelectual é também ter cultura, e eu sou tão má leitora que
agora já sem pudor, digo que não tenho mesmo cultura. Nem sequer li as obras
importantes da humanidade.
[…] Literata também não sou porque não tornei o fato de escrever livros
‘uma profissão’, nem uma ‘carreira’. Escrevi-os só quando espontaneamente me
vieram, e só quando eu realmente quis. Sou uma amadora?
O que sou então? Sou uma pessoa que tem um coração que por vezes
percebe, sou uma pessoa que pretendeu pôr em palavras um mundo ininteligível
e um mundo impalpável. Sobretudo uma pessoa cujo coração bate de alegria
levíssima quando consegue em uma frase dizer alguma coisa sobre a vida
humana ou animal."
A síntese perfeita
"Sou
tão misteriosa que não me entendo."
A certeza do divino
"Através de meus graves erros – que um dia eu talvez os possa
mencionar sem me vangloriar deles – é que cheguei a poder amar. Até esta
glorificação: eu amo o Nada. A consciência de minha permanente queda me leva
ao amor do Nada. E desta queda é que começo a fazer minha vida. Com pedras
ruins levanto o horror, e com horror eu amo. Não sei o que fazer de mim, já
nascida, senão isto: Tu, Deus, que eu amo como quem cai no nada."
Viver e escrever
"Quando comecei a escrever, que desejava eu atingir? Queria escrever
alguma coisa que fosse tranqüila e sem modas, alguma coisa como a lembrança
de um alto monumento que parece mais alto porque é lembrança. Mas queria, de
passagem, ter realmente tocado no monumento. Sinceramente não sei o que
simbolizava para mim a palavra monumento. E terminei escrevendo coisas
inteiramente diferentes."
"Não sei mais escrever, perdi o jeito. Mas já vi muita coisa no
mundo.
Uma delas, e não das menos dolorosas, é ter visto bocas se abrirem
para dizer ou talvez apenas balbuciar, e simplesmente não conseguirem. Então
eu quereria às vezes dizer o que elas não puderam falar. Não sei mais
escrever, porém o fato literário tornou-se aos poucos tão desimportante para
mim que não saber escrever talvez seja exatamente o que me salvará da
literatura.
O que é que se tornou importante para mim? No entanto, o que quer que
seja, é através da literatura que poderá talvez se manifestar."
"Até hoje eu por assim dizer não sabia que se pode não escrever.
Gradualmente, gradualmente até que de repente a descoberta tímida: quem
sabe, também eu já poderia não escrever. Como é infinitamente mais
ambicioso. É quase inalcançável".
A importância da
maternidade
"Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou minha
vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar
meus filhos. O ‘amar os outros’ é tão vasto que inclui até perdão para mim
mesma, com o que sobra. As três coisas são tão importantes que minha vida é
curta para tanto. Tenho que me apressar, o tempo urge. Não posso perder um
minuto do tempo que faz minha vida. Amar os outros é a única salvação
individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes
receber amor em troca […]."
Viver plenamente
"Eu disse
a uma amiga:
– A vida sempre superexigiu de mim.
Ela disse:
– Mas
lembre-se de que você também superexige da vida.
Sim."
Um vislumbre do
fim
"Uma vez eu irei. Uma vez irei sozinha, sem minha alma dessa vez. O
espírito, eu o terei entregue à família e aos amigos com recomendações. Não
será difícil cuidar dele, exige pouco, às vezes se alimenta com jornais
mesmo. Não será difícil levá-lo ao cinema, quando se vai. Minha alma eu a
deixarei, qualquer animal a abrigará: serão férias em outra paisagem,
olhando através de qualquer janela dita da alma, qualquer janela de olhos de
gato ou de cão. De tigre, eu preferiria. Meu corpo, esse serei obrigada a
levar. Mas dir-lhe-ei antes: vem comigo, como única valise, segue-me como um
cão. E irei à frente, sozinha, finalmente cega para os erros do mundo, até
que talvez encontre no ar algum bólide que me rebente. Não é a violência que
eu procuro, mas uma força ainda não classificada mas que nem por isso
deixará de existir no mínimo silêncio que se locomove. Nesse instante há
muito que o sangue já terá desaparecido. Não sei como explicar que, sem
alma, sem espírito, e um cor po morto – serei ainda eu, horrivelmente
esperta. Mas dois e dois são quatro e isso é o contrário de uma solução, é
beco sem saída, puro problema enrodilhado em si. Para voltar de ‘dois e dois
são quatro’ é preciso voltar, fingir saudade, encontrar o espírito entregue
aos amigos, e dizer: como você engordou! Satisfeita até o gargalo pelos
seres que mais amo. Estou morrendo meu espírito, sinto isso, sinto…"
Textos extraídos do livro Aprendendo a viver, Clarice
Lispector. Rio de
Janeiro: Editora Rocco, 2004.